Morte e vida,
quarta-feira de cinzas
* Por Leonardo Marona
O amor havia se fantasiado de cigana. Nos
encontramos em Santa Teresa, em meio a pensamentos de confete, e terminamos
numa cama desfeita, arrepiados de saliva. Depois que o amor tirou a fantasia,
ou melhor, depois que a fantasia foi arrancada com os dentes deste que vos
confessa, não houve sono nem sexo, mas houve tudo, sem nexo, pois era o amor
outra vez e o amor, quando é outra vez, não admite sono nem sexo, de modo que
dormimos de olhos abertos para dentro, abraçados enquanto os ponteiros do
relógio derretiam sobre as notas soltas de uma orquestra dissonante no fundo do
corredor já sem prédio, dentro do bairro já sem cidade.
Não podia amá-la, mesmo fantasiada, afinal não se
ama o meio, o amor, mas o fim, aquilo que ele não diz. E no vazio do embalo
coxo de uma dança com poucos movimentos calamos juras de carnaval com beijinhos
de esquimó e asas de borboleta foram encontradas dentro dos nossos bolsos, dos
meus e do amor travestido de cigana inamável.
No dia seguinte, como era de se esperar, ele o
amor, ela a cigana, já não estavam mais lá: a fantasia era minha. Olhei no
espelho e nem eu: trapos sobre um corpo estranho atravessado por idéias de
sorriso no choro incontido em gases violetas. Não era eu mesmo, mas foi tão
bonito!
Da pia do banheiro fiz a manjedoura. Das lâminas do
êxtase a profecia. Do pulso as águas de minhas palavras vermelhas. E ao lado da
barriga aberta de sonhos inatos, nada além de uma carta escrita com letras
gregas, trêmulas de vinho, dedicada àquela que se foi sem ter vindo.
Escorreguei pelas escadarias sem saber que as escadarias eram serpentinas
desenroladas conforme passos.
Quando cheguei no não sei onde chegar, percebi com
os dedos dos sonhos – ou seria ela? – que com sorrisos não se cabia mais nas
ruas. As pessoas em volta, em minha homenagem, insistiam em ignorar minhas
perguntas. Mas elas cabiam, pois carregavam pastas e frases postiças, além de
carreiras de tosse. Uma ofendia a madrugada, agarrada a um poste. Outra
acompanhava um funeral, cercada de mais alguns conhecidos. Entre eles um outro,
muito parecido comigo, por sorte deitado, mãos cruzadas de céu, era levado pela
ressaca de mãos e lágrimas, tal qual o mito de Noel.
O sol fazia barulho de expectativa. As crianças
estavam embriagadas, obscenas, envergonhadas dos adultos. E os adultos
esfaqueavam sombras, desejo de serem reconhecidos pela própria emoção. Pus as
mãos nos bolsos, pus atrás dos olhos: as asas haviam se desmanchado em cinzas
da quarta estação.
O sol tocava surdo a chuva reco-reco o ritmo de
outro mundo onde as coisas arrastavam a pressa de um mundo pintado no interior
dos anos que não passaram; ficaram deitados nos bancos de praça sussurrando
nomes antigos cobertos pelas páginas sujas das notícias de ontem: olhos
necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto, tão perto, tão colo, tão
longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre, meu amor.
Não amo porque sou o amor, morto apesar de eterno,
asco de asas pálidas perdidas como olhos pintados na cor esquálida dos bolsos
secretos, apesar do que o cérebro degolado monta quando não quer se despedir do
adeus.
*
Escritor
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