domingo, 24 de fevereiro de 2013


Os novos impressionistas

* Por Ronaldo Bressane

 Já faz tempo que se sabe que osgemeos são os grandes gênios do graffiti nacional. Paulistanos do Cambuci, os mais-que-iguais Gustavo e Otávio Pandolfo são conhecidos por dominarem dúzias de técnicas da “arte mural” – látex, spray, stencil, máscaras, canetas e longa lista de etc. – e serem incansavelmente audaciosos, a ponto de deixar sua marca registrada no alto de arranha-céus, em trens da CPTM, fachadas, muros, paredes, postes… onde der. Mais que isso: sem se deter um instante no que coçadores-de-queixo-de-vernissages suspiram como “teoria”, forjaram um universo pictórico, gráfico e cromático único. Às garrafas de Morandi, às bandeirinhas de Volpi, aos girassóis de Van Gogh e às gordinhas de Botero acrescente-se, de agora em diante, os homens amarelos d’osgemeos - que realizam na Galeria Fortes Vilaça, inusitadamente, a primeira “individual” brasileira de artistas egressos do graffiti.

Osgemeos são o exato oposto dos punheteiros da arte conceitual… aquele tipo de artista cuja obra não se sustenta sem uma bula explicativa do lado ou um crítico amigo no bolso. Há quinze anos eles simplesmente vão lá e fazem, ignorando regras estéticas, a ordem pública ou a lei da gravidade. A dupla dinâmica é ainda o epicentro da poderosa arte nascida e criada nas ruas de SP – com óbvias influências no graffiti novaiorquino e seu pé no hiphop, porém hoje liberada para canibalizar qualquer referência –, cujos nomes de frente são, entre outros, Zezão, Speto, Nunca, Vitché, Jana, Ise, Tikka, TitiFreak, DeddoVerde, Flip, Nina, Boleta. Artistas que, pela diversidade, fazem da cena graffiti de São Paulo a mais importante do mundo, hoje.

Quando visitei pela primeira vez a galeria Choque Cultural, há uns dois anos, tive uma sensação estranha. Imediatamente, reconheci nas paredes as imagens, os estilos e as marcas que minhas retinas haviam captado e perdido tantas vezes nas andanças por SP –  tão naturais ao meu cotidiano, era como se me pertencessem, participassem de meu imaginário mais íntimo (certamente já teria sonhado com elas). Naquele sobrado da João Moura um fortíssimo movimento artístico se demonstrava, sem programa ou manifesto que não fosse o velho e bom do it yourself pretendido tanto por punks quanto por impressionistas… sim, aqueles mesmos, que deram as costas à academia e foram buscar ao ar livre suas próprias referências. Na atitude intrépida e pela diversidade e consistência de cada estilo, chegando para atropelar noções de bom-gosto de crítica e público, foi assim que os vi: como os novos impressionistas.

Hoje, vários grafiteiros trocam perigosos muros da cidade por confortáveis paredes brancas de galerias (alguns nem se consideram mais grafiteiros, enquanto recém-chegados se dizem grafiteiros só pra surfar o hype…), são puxasaqueados por marketing, mídia e classmedia (’será que esse pôster do Speto vai combinar com a cor do sofá da sala?’), e começam a ganhar dinheiro e notoriedade internacional (osgemeos passaram grande parte de 2005 trabalhando no exterior). E, claro: por ocuparem espaço no limitado mercado brasileiro, sempre latifundiado por artistas bem-nascidos e melhor articulados, tomam suas primeiras pedradas da crítica. Como vai ser essa passagem do meio-fio ao marchand, não sei – só espero que não tenham o mesmo destino do Jean-Michel Basquiat, paradigma do artista parido nas calçadas.

O que se sabe, não precisa ser muito esperto para sacar, é que a primeira individual d’osgemeos é um marco na arte brasuca. Não só pelo fato de a dupla transitar da efêmera criação praticada em paredes a obras duradouras (orçadas, aliás, em R$ 20 mil). E não só por simbolizarem uma mudança no público freqüentador – e consumidor – de galerias. Mas sobretudo por Gustavo e Otávio terem ultrapassado o plano bidimensional de quadros e muros rumo à tridimensionalidade de O peixe que comia estrelas cadentes. Com impressionante riqueza de detalhes, combinam barco, bicicleta, bonecos gigantes e outros minúsculos, luzes, trilha sonora, traquitanas, jogos de espelhos… a um raro senso de espetáculo. Só não sai maravilhado e emocionado da exposição quem já não sente mais nada, dopado pelo papo-furado do crítico da moda ou pela fuligem das ruas.

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e atua no HYPERLINK http://impostor.blogspirit.com http://impostor.blogspirit.com.

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