Bento ou Benedito?
Por Urda Alice Klueger
(Como as coisas se
passaram quando o papa foi eleito)
Quando eu
era criança, eu via que o Brasil era como era. Depois cresci e li Gilberto
Freire e seu entusiasmo, e passei a crer que vivíamos, mesmo, numa democracia
étnica. Daí cresci mais e vivi mais, e fui vendo que a coisa não era bem assim,
e veio Darcy Ribeiro e outros me acenando com o outro lado da moeda, mas mesmo
assim eu acho que não estava nada preparada para o ato explícito de racismo
institucionalizado ao qual assisti nesta semana.
Vejamos:
eu liguei a televisão bem na horinha em que começou a sair uma primeira
fumacinha lá na chaminé da capela Sistina, ainda fumaça tão tênue que não se
definia a cor – e logo a fumaça ficou branca! Era hora do Jornal “Hoje”, e a
expressão “Habemus Papa” passou a estar na boca de todos, seguida da grande
curiosidade: “Quem é, quem é?”. Então, nos trinta ou quarenta minutos seguintes
as coisas se definiram: havia sido escolhido o alemão Joseph Ratzinger, e isto
é assunto para outra discussão, e que discussão! Mas o que nos interessa, neste
momento, é que quando se soube quem era o Papa, ele já havia escolhido seu nome
de Papa, e o Jornal Hoje já estava devidamente calçado com a presença de um
teólogo da USP, que clareava o que não se sabia. Soube-se, então, que o nome
que o Papa escolhera significava “Abençoado”, e o teólogo foi taxativo: tanto
em italiano, quanto em português, “Abençoado” significava “Benedito”, ou
“Bento”. Então não havia dúvidas: Habemus Papa Benedito, XVI, para se ser mais
exato, pois outros 15 Beneditos já houvera.
Por uns
30 minutos, no Brasil, tivemos o Papa Benedito XVI. O Jornal Hoje se estendia
sem pressa, e o teólogo da USP explicava tudo que se queria saber,
tintim-por-tintim, quando de repente, uma meia hora depois, o nome do Papa
passou para Bento. Eu cá estranhei: aquilo tinha cheiro de racismo! Lembrei-me
de São Benedito, santo preto muito popular no Brasil, padroeiro das gentes
negras – será que uma coisa não estava tendo a ver com a outra? Passei uma
mensagem para uma amiga antropóloga na Alemanha, grande conhecedora de Brasil,
contando o que acontecia, e ela me respondeu: “Aqui ele é Benedikt. Eu acho que
é racismo, sim!” Expus o caso para minha faxineira, que passava roupa e espiava
a televisão ao mesmo tempo: “O que tu achas?” – Ela foi taxativa: “Bento fica
melhor, tu não estás vendo? Benedito é nome di nego!” . Eram opiniões de áreas
extremas: ia desde uma doutora em Antropologia até minha pouco alfabetizada
faxineira, passando pela humilde escriba que sou. Telefonei para minha mãe e
expus o caso – ela achava melhor não mexer com tais coisas. Então, só restava
esperar. E esperei.
Nas horas
seguintes, nos dias seguintes, fui vendo que a exclusividade do nome Bento
pertencia ao Brasil (e agora descobri que a Portugal também). Na língua
espanhola o papa é Benedicto; na língua alemã é Benedikt – na verdade, não
pesquisei em muitos países, pois já conheço um bocado este Brasil onde
“Benedito é nome di nego”, e posso entender este racismo que assola a minha
gente, sob a capa de uma democracia étnica. E Portugal, bem ... se um dia fomos
no embalo de Portugal, penso que hoje Portugal muito nos copia – basta ver o
gosto dos portugueses pelas nossas novelas!
Taí o que
queria falar. Se “Abençoado”, no Brasil, quer dizer Bento, e não Benedito, acho
que São Benedito e nossos irmãos negros têm muito a ver com a coisa. Se na
nossa língua não se aceita ter um Papa Benedito, eu acho que tem a ver com o
mais descarado racismo, sim. Gilberto Freire que me perdoe, mas a tal
democracia étnica está fazendo água.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Afundamos no racismo, e somos criticados acaso afirmamos que ele está na ordem do dia. Lembro-me da mudança de nome, e preferiria o primeiro. Mas esconderam o fato. Da mesma forma que uma mulher não diz a idade, fingindo-se de nova sem sê-lo (como se isso fosse possível), é horripilante o negro que se nega negro, até por saber onde pisa. Não tenho essas dificuldades: sou mulher de 57 anos e sou parda, ainda que meus amigos dizem que eu sou morena e não parda, para me branquear. Protesto. Mesmo com o preconceito, mudar o nome não me torna mais clara e nem melhor. Minha sinceridade e autenticidade são o que são, embora alguns não gostem dela.
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