Para saciar o coração
Por Pablo Uchoa
Quando a gente era pequeno e torcia o nariz para fígado
acebolado, minha mãe fazia arroz-ovos-e-leite. Arroz do almoço com leite
fervido, ovos para engrossar, sal e pimenta a gosto. A gente achava um barato,
principalmente porque ela deixava fazer desenhos no prato com o jato do
ketchup. Um clássico da alimentação na minha infância.
Veio a adolescência e outro clássico: o miojo. Tinha um
amigo que botava pimentão, cebola, tomate, alho. Fazia aquele supermiojo e jogava
por cima o pacotinho de tempero que vinha junto. Ficava tudo com gosto de miojo
normal.
O miojo sobreviveu até os primeiros anos da faculdade.
É engraçado, comer remete a gente às experiências da vida.
Mesmo quando a gente não come.
Eu, pelo menos, morro de saudade quando lembro do cheiro de
ata, jenipapo, goiaba, sirigüela que transbordava do jardim da casa da minha
avó no interior. Saudade para valer, até das costelas doloridas de tanto cair
de goiabeira. Quando vinha a chuva, então, misturava o cheiro da terra molhada
com cheiro de fruta com bicho de pé, até do bicho de pé eu tenho saudade.
Mas ainda bem, passou a fase do arroz-ovos-e-leite e do
bicho de pé. No mundo adulto, a culinária e as micoses são mais sofisticadas. A
mesa virou quase um laboratório de antropologia.
Outro dia, por exemplo, descobri perto da minha casa um
refúgio japonês que me teletransportou diretamente para Tóquio. Dei de cara com
a mercearia quando andava pela rua.
- Aqui tem de tudo, né? – sorriu, orgulhosa, a japonesinha
que tomava conta do estabelecimento.
Resolvi me certificar.
- Puxa vida! Tudo mesmo? Tem arroz de sushi, sashimi,
konbu, missô...
- Tudo tudo, né? Até nirá.
- O que é nirá?
- Ah, é um legume que vai no rolinho primavera. Tipo uma
cebolinha.
- Posso ver?
- Tá faltando.
- Sei... Então eu posso substituir por cebolinha?
- Hum... não. Diferente, né? Que receita você quer fazer?
- Ora bolas, rolinho primavera.
- Ah, pode pôr cebolinha.
- Substituindo o nirá?
- Ah, não. Diferente, né?
Tudo bem, pensei. Ali se falava outra língua. Literalmente.
Nem por isso desisti de unir o Ocidente e o Oriente nesta
minha fase atual de antropologia gastronômica. Aprendi, por exemplo, que os
chineses, os mestres na arte do comércio, não fecham negócio importante que não
seja à mesa.
E que os coreanos brindam à felicidade com o bekseju, uma bebida que segundo eles
contém cem anos de vida em cada dose. Da última vez que me sentei à mesa com um
coreano, saí me sentindo o próprio Matusalém.
A comida, em qualquer época, sempre serviu para juntar as
pessoas. Eu mesmo às vezes balanço as panelas – e uso como pretexto para reunir
os amigos. “Gente, cozinhei demais, alguém topa raspar o tacho?”
Está arrumado um substituto para o velho e bom violão que
ficou empoeirado no quartinho de visitas. Antigamente, o pessoal se reunia para
fazer cantoria e beber cerveja depois da aula. Hoje o pessoal come.
Antigamente eu tocava Djavan e Caetano Veloso para as
meninas, hoje eu passo a mão no telefone: “loirinha, fiz salada demais. Não
queria que estragasse...”
Truque antigo, dos tempos em que o Brigadeiro-do-ar deu
nome ao docinho de leite condensado e chocolate, que uma moçoila prendada fazia
para lhe cortejar.
Mas esse não é o xis da questão. É que quem cozinha gosta
de estar rodeado de amigos. Quem cozinha – e entra no espírito da coisa – é um
explorador das redondezas. Da cidade. Fuçador de feira-livre, de mercado de
bairro, de mercado central.
É o sujeito que se atrasa no trabalho mas compra
ingredientes naquela birosca da ruazinha à direita sem número, uma portinhola
subindo a escada, que só abre de segunda a sexta, das 10h às 15h. Cujo dono, um
velhinho aposentado emigrado dos confins do Judas, traz o cogumelo mais
saboroso da Itália, a ostra mais mineral da Bélgica, o rabo de jacaré mais
fresco cultivado naquela fazendinha do interior.
O cara que cozinha – e entra no espírito da coisa –, quando
vai para a feira, deixa o carro em casa e prefere caminhar pelas barraquinhas
de sacola na mão. Observando o movimento, o burburinho, os passarinhos, as
cenas da cidade. Falando com as pessoas, deixando de ser motorista para ser
pedestre, exercitando a convivência em público. A cidadania.
É o bom cristão – já que, como diz aquela música, “o
cristão tem que andar a pé”. E quem peregrina – para Santiago de Compostela,
para o Crato – sabe que na próxima paragem vai encontrar sempre comida farta e
vinho caloroso (nos casos em que se aplica). Acomodação calórica e generosa
como um frade franciscano.
Pronto, virou questão religiosa. Mas sem xiismos, por
favor. Quem cozinha dentro do espírito da coisa é um amante das diferenças. Não
conhece (ou conhece bastante) a palavra “exotismo”. Prefere muito mais bolinho
de pirarucu que de bacalhau, rã à milanesa que frango à passarinho, testículo de
galo que coração de galinha. Não cansa de exercitar a curiosidade. E nunca se
acha o tal porque conhece a comida e a cultura daqui ou de lá.
Como uma amiga minha, que fez fama de apreciadora dos bons
vinhos e da boa comida. Vez por outra ela é surpreendida ao chegar em alguma
festa. Da última, a anfitriã, obsequiosa, quis oferecer-lhe “um vinhozinho para
comemorar o encontro”.
“Imagine”, ela sorriu amarelo. “A cervejinha tá tão boa, o
clima tá quente...”
Mas a anfitriã insistiu. E veio da cozinha com o vinho em
copo de plástico. E uma pedrinha de gelo “para matar o calor”.
Minha amiga sorriu. Aceitou. Nem todo mundo precisa
compartilhar o mesmo hobby com você, ela se conformou.
Mas depois me confessou: estava uma delícia o vinhozinho em
copo de plástico com uma pedrinha de gelo. Naquele momento, naquela noite,
naquela festa, com aquela brisa, ela se sentiu privilegiada de tanta atenção.
Até relevou a indefectível dor-de-cabeça-de-vinho-barato do dia seguinte.
Não importa. Porque nessas horas a gente, que gosta de
cozinhar e entra no espírito da coisa, quer saber mesmo é de festejar a
amizade, os sentidos, as coisas simples da vida. Lembrar de quando a gente era
menos fresco e achava o máximo arroz-ovos-e-leite. E pensar na terra, a terra,
de onde a gente saiu e para onde a gente vai voltar, sem levar da vida nada
além da beleza que só existe nos pequenos prazeres.
* Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se
a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de
Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez”
(Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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