domingo, 17 de fevereiro de 2013


Para saciar o coração

Por Pablo Uchoa

Quando a gente era pequeno e torcia o nariz para fígado acebolado, minha mãe fazia arroz-ovos-e-leite. Arroz do almoço com leite fervido, ovos para engrossar, sal e pimenta a gosto. A gente achava um barato, principalmente porque ela deixava fazer desenhos no prato com o jato do ketchup. Um clássico da alimentação na minha infância.

Veio a adolescência e outro clássico: o miojo. Tinha um amigo que botava pimentão, cebola, tomate, alho. Fazia aquele supermiojo e jogava por cima o pacotinho de tempero que vinha junto. Ficava tudo com gosto de miojo normal.

O miojo sobreviveu até os primeiros anos da faculdade.

É engraçado, comer remete a gente às experiências da vida. Mesmo quando a gente não come.

Eu, pelo menos, morro de saudade quando lembro do cheiro de ata, jenipapo, goiaba, sirigüela que transbordava do jardim da casa da minha avó no interior. Saudade para valer, até das costelas doloridas de tanto cair de goiabeira. Quando vinha a chuva, então, misturava o cheiro da terra molhada com cheiro de fruta com bicho de pé, até do bicho de pé eu tenho saudade.

Mas ainda bem, passou a fase do arroz-ovos-e-leite e do bicho de pé. No mundo adulto, a culinária e as micoses são mais sofisticadas. A mesa virou quase um laboratório de antropologia.

Outro dia, por exemplo, descobri perto da minha casa um refúgio japonês que me teletransportou diretamente para Tóquio. Dei de cara com a mercearia quando andava pela rua.
- Aqui tem de tudo, né? – sorriu, orgulhosa, a japonesinha que tomava conta do estabelecimento.

Resolvi me certificar.
- Puxa vida! Tudo mesmo? Tem arroz de sushi, sashimi, konbu, missô...
- Tudo tudo, né? Até nirá.
- O que é nirá?
- Ah, é um legume que vai no rolinho primavera. Tipo uma cebolinha.
- Posso ver?
- Tá faltando.
- Sei... Então eu posso substituir por cebolinha?
- Hum... não. Diferente, né? Que receita você quer fazer?
- Ora bolas, rolinho primavera.
- Ah, pode pôr cebolinha.
- Substituindo o nirá?
- Ah, não. Diferente, né?

Tudo bem, pensei. Ali se falava outra língua. Literalmente.

Nem por isso desisti de unir o Ocidente e o Oriente nesta minha fase atual de antropologia gastronômica. Aprendi, por exemplo, que os chineses, os mestres na arte do comércio, não fecham negócio importante que não seja à mesa.

E que os coreanos brindam à felicidade com o bekseju, uma bebida que segundo eles contém cem anos de vida em cada dose. Da última vez que me sentei à mesa com um coreano, saí me sentindo o próprio Matusalém.

A comida, em qualquer época, sempre serviu para juntar as pessoas. Eu mesmo às vezes balanço as panelas – e uso como pretexto para reunir os amigos. “Gente, cozinhei demais, alguém topa raspar o tacho?”

Está arrumado um substituto para o velho e bom violão que ficou empoeirado no quartinho de visitas. Antigamente, o pessoal se reunia para fazer cantoria e beber cerveja depois da aula. Hoje o pessoal come.

Antigamente eu tocava Djavan e Caetano Veloso para as meninas, hoje eu passo a mão no telefone: “loirinha, fiz salada demais. Não queria que estragasse...”

Truque antigo, dos tempos em que o Brigadeiro-do-ar deu nome ao docinho de leite condensado e chocolate, que uma moçoila prendada fazia para lhe cortejar.

Mas esse não é o xis da questão. É que quem cozinha gosta de estar rodeado de amigos. Quem cozinha – e entra no espírito da coisa – é um explorador das redondezas. Da cidade. Fuçador de feira-livre, de mercado de bairro, de mercado central.

É o sujeito que se atrasa no trabalho mas compra ingredientes naquela birosca da ruazinha à direita sem número, uma portinhola subindo a escada, que só abre de segunda a sexta, das 10h às 15h. Cujo dono, um velhinho aposentado emigrado dos confins do Judas, traz o cogumelo mais saboroso da Itália, a ostra mais mineral da Bélgica, o rabo de jacaré mais fresco cultivado naquela fazendinha do interior.

O cara que cozinha – e entra no espírito da coisa –, quando vai para a feira, deixa o carro em casa e prefere caminhar pelas barraquinhas de sacola na mão. Observando o movimento, o burburinho, os passarinhos, as cenas da cidade. Falando com as pessoas, deixando de ser motorista para ser pedestre, exercitando a convivência em público. A cidadania.

É o bom cristão – já que, como diz aquela música, “o cristão tem que andar a pé”. E quem peregrina – para Santiago de Compostela, para o Crato – sabe que na próxima paragem vai encontrar sempre comida farta e vinho caloroso (nos casos em que se aplica). Acomodação calórica e generosa como um frade franciscano.

Pronto, virou questão religiosa. Mas sem xiismos, por favor. Quem cozinha dentro do espírito da coisa é um amante das diferenças. Não conhece (ou conhece bastante) a palavra “exotismo”. Prefere muito mais bolinho de pirarucu que de bacalhau, rã à milanesa que frango à passarinho, testículo de galo que coração de galinha. Não cansa de exercitar a curiosidade. E nunca se acha o tal porque conhece a comida e a cultura daqui ou de lá.

Como uma amiga minha, que fez fama de apreciadora dos bons vinhos e da boa comida. Vez por outra ela é surpreendida ao chegar em alguma festa. Da última, a anfitriã, obsequiosa, quis oferecer-lhe “um vinhozinho para comemorar o encontro”.

“Imagine”, ela sorriu amarelo. “A cervejinha tá tão boa, o clima tá quente...”

Mas a anfitriã insistiu. E veio da cozinha com o vinho em copo de plástico. E uma pedrinha de gelo “para matar o calor”.

Minha amiga sorriu. Aceitou. Nem todo mundo precisa compartilhar o mesmo hobby com você, ela se conformou.

Mas depois me confessou: estava uma delícia o vinhozinho em copo de plástico com uma pedrinha de gelo. Naquele momento, naquela noite, naquela festa, com aquela brisa, ela se sentiu privilegiada de tanta atenção. Até relevou a indefectível dor-de-cabeça-de-vinho-barato do dia seguinte.

Não importa. Porque nessas horas a gente, que gosta de cozinhar e entra no espírito da coisa, quer saber mesmo é de festejar a amizade, os sentidos, as coisas simples da vida. Lembrar de quando a gente era menos fresco e achava o máximo arroz-ovos-e-leite. E pensar na terra, a terra, de onde a gente saiu e para onde a gente vai voltar, sem levar da vida nada além da beleza que só existe nos pequenos prazeres.

* Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.

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