No trem do destino
Por Nei Duclós
Cada batida da roda no trilho é
uma paisagem nova que a janela improvisa. Não nova no sentido de novidade, mas
verde quando é pampa, azul quando é serra, infinito quando é água. O tranco da
locomotiva leva o vagão para a curva do destino. A fila de imagens que não
canso de olhar é o cinema que me falta. Amanhecer ao lado da grande tela de
vidro embaçado é antever o sol que ainda não veio, e basta uma lufada de mão na
neblina cristalizada para ver um raio que atinge o pássaro ao pé de um riacho,
a ponte inútil de madeira comida, o gado esparso na grama cercada.
Mais um pouco de luz e tudo se
descortina, principalmente a viagem que talvez agora chegue ao fim, depois de
uma noite mal dormida, em meio à população que se dirige a algo que não
entende, a vida passada em trajetos sem sentido. Ao meio-dia é hora do almoço
na estação antiga e de conviver com o cheiro de panela de ferro, arroz de
outras vidas, talvez com o gosto de infância ou de liberdade.
É de trem que eu preciso, para
chegar ao tempo que me absolve. Não se trata de fugir ou de puxar a memória
como um elástico frio. Mas de viajar de novo, enquanto o país desmoronado nos
permite uma trégua e haja homens de chapéu e senhoras de véu na cabeça e
adolescentes como nós, empertigados em nossas roupas providenciadas pela mãe
que nos deus adeus no ponto de partida.
Passeamos pela serpente
enferrujada, apertados em corredores de bancos ou de dormitórios precários, até
chegar ao restaurante onde arriscávamos uma cerveja fabricada na beira daquela
estrada. O mundo se localizava no lugar onde estávamos e não era essa
confluência de nadas, em que não nos deciframos, mesmo que tenhamos certeza de
que é assim que seria, e nada poderíamos mudar com nossas calças curtas, nossa camisa
de jersey, nosso cabelo engomado, nossa escassez de criaturas datadas.
Queríamos saber o que o arco-íris
nos reservava, sem atinar que o trem era o que passaríamos a vida buscando. Não
era nossa intenção ficarmos fixos neste eterno presente, em que não se tolera
reminiscências, e quando elas existem é para mentir sobre o que fomos um dia.
Por isso faço a mala, ponho meu terno azul marinho, e envergado sobre mim traço
a viagem de volta. Aguardo junto com outros passageiros que, como eu, voltam
para reencontrar o que deixamos para trás.
Estamos novamente enganados. Não
é no fim da linha que teremos novamente o café com pão da família perdida, nem
na cidade que deixamos por mero capricho. É esse retorno que nos incomoda,
porque há desconforto, apertos entre desconhecidos. E talvez o trem atrase
outra vez, já que ele não existe mais, mas teima em ficar parado algum tempo
embaixo da lua cheia, enquanto ficamos aflitos à espera do reinício do impulso
que nos carrega.
Nunca vamos aprender que andar é o caminho, e que os
destinos, no começo ou no final da jornada, são mais precários do que qualquer
sonho despertado no meio da noite, quando vemos o teto do vagão sumir para que
possamos ver as estrelas.
No fundo da madrugada, o trem
pára novamente. Olhamos pela janela, que também dorme. Uma luz cercada pelo
fogo fátuo das mariposas nos diz que ali é um ponto conhecido, por onde
passaremos mais uma vez em direção ao que não nos consola. Crianças se agitam,
senhores do povo conversam baixo sobre pescarias e negócios. Há um cheiro de
cabelos engomados, de chapéu de feltro, de xales de lã. Onde estou?, me
pergunto.
Estou no meio do meu ofício, que
é tentar entender a passagem obscura pela terra envolta em mistério. Estou só,
como a criança que adormece no crepúsculo e acordo na boca da escuridão com um
solavanco. Ela vê o homem fardado passar com seu boné de autoridade máxima da
viagem. O homem recolhia passagens quando todos se aboletaram pelos bancos.
Agora ele vigia o sono de quem escolheu esse momento para percorrer a trilha
insana de uma vida. A criança fecha novamente os olhos e o embalo da serpente
emplumada o leva para longe. Para lá, onde a poesia dorme e as palavras soltas
como um rebanho pastam no esplendor de uma revelação.
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua”
(1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004).
Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em
Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
Gostei do trem parado debaixo da lua e do vai-e-vem do tempo nesse trem. Criança, velho, solavancos e sonhos. Uma vida passa através da janela do trem.
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