quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013


Ônibus da Linha Leblon
 (Conto)

* Por Pedro J. Bondaczuk


As cidades grandes afastam as pessoas. Muitas vezes vivemos em um bairro durante décadas e sequer chegamos a conhecer nosso vizinho do lado. Cruzamo-nos uma infinidade de vezes e na maioria dos casos, o máximo de relacionamento que nos permitimos é um bom dia ou boa tarde distraídos ou mero aceno de cabeça. Ou nem isso. Um passa pelo outro como se passasse diante de um ser inanimado, de um boneco, de um robô, de uma miragem, de uma simples visão.

A luta pela sobrevivência torna nossa vida perpétua correria. Corremos até quando não é necessário e temos todo o tempo do mundo para gastar. A violência urbana afasta-nos de estranhos, por questão de prudência, para evitar assaltos e outros contratempos.

Nem todos, porém, são assim. Há pessoas ingênuas (diria autênticas), na maioria dos casos vindas há pouco do interior, que puxam conversa com qualquer um e em qualquer lugar. Lembro-me, a propósito, de um episódio ocorrido comigo no Rio de Janeiro.

Tomei um lotação nas proximidades da estação Dom Pedro II, com destino ao Leblon, onde tinha compromisso social. Como quisesse rever as belas praias da Zona Sul, saí com bastante tempo, com intenção de vagar a esmo, até a hora marcada para o encontro. A linha que resolvi tomar era a mais longa, com maior número de paradas e eu sabia disso.

Mal o veículo rodou três quarteirões, subiu uma mulata de meia-idade, bonita, mas de beleza já um tanto gasta pelas dificuldades e sofrimentos, que estavam desenhados em seu rosto. Como o banco do meu lado estava vago, a mulher sentou-se ali. Não tardou para que puxasse conversa.
--- O senhor vai para o Leblon? ---, perguntou, embora parecesse o óbvio.
--- Sim ---, respondi secamente, um tanto distraído, perdido em meus pensamentos e com a atenção concentrada na janela, no movimento das ruas, nos prédios, nas lojas e nas calçadas. Não estava com disposição para conversar com ninguém, muito menos com pessoa estranha.
--- Eu também vou para lá. Trabalho num apartamento, o de dona Mariazinha Moreira, conhece? ---. insistiu a mulata, como se me conhecesse de longa data.
--- Não! ---, respondi, laconicamente. ---- Não moro no Rio de Janeiro---. acrescentei, à guisa de explicação.

Porque fui responder! A mulher começou a desfiar, primeiro, toda a história da patroa, intercalando elogios à sua condição social e críticas ao seu "pãodurismo" e severidade. Depois, pôs-se a falar de si, de sua família, de onde e como vivia etc. Lembro-me de poucos detalhes dessa conversa, que começava a me cacetear, já  que contrariava minha intenção de observar o trecho da cidade por onde passávamos, para fixar detalhes na memória. Mas a mulata não parava de matraquear.

Disse que vinha de Minas (o nome da cidade não me recordo). Havia se separado do marido, incorrigível "pé-de-cana", que quando bebia, quebrava tudo o que havia em casa e ainda de sobra espancava-a e aos filhos.
--- E eu com isso! ---, pensava mal-humorado com os meus botões.

De vez em quando, por questão de hábito e para fazer a interlocutora parar de falar, eu fazia uma ou outra observação, torcendo para que o lotação chegasse logo ao meu destino ou, o que seria melhor, ao dela.

Sua voz era irritante. Falava alto e quando narrava detalhes das brigas com o marido, poderia parecer aos outros passageiros que estava discutindo comigo. Eu já não sabia onde enfiar a cara de vergonha.

E a mulata prosseguia explicando que estava amigada com um bom homem no Rio, que tinha uma filha de 14 anos que fazia admissão (naquele tempo havia uma espécie de vestibular para quem saísse do primário e quisesse cursar o ginásio), que a menina era muito inteligente e esforçada, que também estudava datilografia, que já era a segunda porta-bandeira da Escola de Samba Império Serrano, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá .

A mulher não parava de falar e nada de chegarmos ao destino (dela ou meu). Em resumo: num trajeto de cerca de meia hora, fiquei conhecendo toda sua história de vida. Ou pelo menos sua versão, um tanto dramatizada, de suas venturas e desventuras.

Hoje, passadas três décadas, quando me lembro desse episódio, não consigo deixar de rir e até de sentir uma pontinha de ternura pela mulata. Gente ingênua, como ela, escasseia cada vez mais nas cidades. Até mesmo, ou principalmente, no Rio.

Mas o pior estava reservado para a minha volta do Leblon. No terceiro ponto, depois que tomei o lotação, quem é que sobe? Exato, a mesma mulher!

Toquei a campainha, discretamente, levantei-me e desci na primeira esquina, antes que a mulata tivesse tempo de se sentar ao meu lado. Ela reconheceu-me e deu-me uma piscadela de cumplicidade.

Da calçada, ainda pude vê-la conversando com novo interlocutor. Ou melhor, com novo ouvinte das venturas e desventuras de um histórico de vida que trazia na ponta da língua de tanto narrar para os outros, provavelmente com algumas variações em torno do mesmíssimo tema.

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário: