Coitada da Laizinha
* Por José
Ribamar Bessa Freire
Eu sei... eu sei, desocupado
leitor - quero dizer, ocupado folião - que em pleno reinado do Momo, ninguém
pode silenciar cuícas, surdos, reco-recos, pandeiros e tamborins só para que
penses nela. Ninguém tem o direito de exigir que interrompas o carnaval para
dedicares a ela alguns minutos da tua precária, mas preciosa existência. Eu
sei, mas ainda assim me arrisco a te fazer essa súplica, certo de que serás
solidário quando souberes que ela, Laizinha, está comendo a mandioca que o
capiroto ralou.
Sucede que em minhas caminhadas
matinais, dentro de um parque arborizado, encontro aqui e ali figuras que
costumam conversar com a própria solidão. Um deles é um senhor mais ou menos da
minha idade - sejamos francos: um velho - que enquanto caminha vai murmurando,
bem baixinho, frases desconexas. Mas ontem ele estava com a voz tão alterada,
que um gari, por trás dele, rodou o dedo indicador em volta da têmpora pra me
avisar:
- O cara é tantã, tem um parafuso
frouxo!
Será? Curioso, decidi segui-lo de
perto, com simpatia, talvez por causa de sua cara de portuga, parecida com a do
ex-prefeito de Manaus, Serafim Correa (PSB). Tive de diminuir o ritmo dos meus
passos para não ultrapassá-lo. Depois de alguns minutos, percebi que o cabra
não estava falando sozinho, nem pensando em voz alta, que ele conversava com um
interlocutor, invisível para os demais e meio surdo, pois embora lhe desse um
tratamento de respeito e reverência, de vez em quando os sussurros se
transformavam em gritos. Na realidade, o cabra falava com Deus.
Não
costuma faiá
É isso aí. O cabra rezava. Rezava
em voz alta, na frente de todo mundo, em ambiente não apropriado, por isso
parecia lelé da cuca. Rezar em voz alta dentro de uma igreja, tudo bem, mas no
meio da rua? Parece estranho para alguém, como esse que digita essas mal
traçadas, que só sabe mostrar seu olhar, seu olhar, seu olhar. E foi aqui que,
sem querer, conheci a Laizinha. Bem, conhecer é uma forma de falar. Digamos,
que tomei conhecimento da existência dela.
O rezador desfilava uma série de
nomes, como uma ladainha. A família dele era grande. Mas eu me detive na
primeira frase, que nada tinha de desconexo:
- Pai, quero te pedir pela
felicidade da minha família, especialmente pela Laizinha que não precisava
estar passando por tanto sofrimento. Te peço, Pai, ajuda a Laizinha a encontrar
seu caminho...
Ele rezava em voz alta, com fé,
com convicção de quem sabe que "a fé não costuma faiá". Sua voz,
trêmula, indicava que estava sofrendo no momento em que registrava o pedido.
Quem era, afinal, Laizinha? Segui-o ainda, discretamente, durante algum tempo,
intrigado, curioso, mas ele colocava outras pessoas no pacote de oração.
Retornava à Laizinha, mas sempre com as mesmas palavras, sem explicitar que
sofrimento era aquele.
Na falta de dados, dei asas à
imaginação. A única coisa que sabia é que Laizinha, evidentemente, era uma
mulher, que sofria, que estava perdida e que precisava encontrar seu caminho.
Mas qual era sua faixa etária? O diminutivo podia indicar que podia ser uma
criança, talvez a neta dele, que estava com algum tipo de doença grave. Mas se
fosse isso, ele não pediria para ela "encontrar seu caminho".
Reza
cura
Laizinha podia ser, então, uma
adolescente namoradora, como minhas sobrinhas Vôve e Malu, que teriam sofrido
alguma desilusão amorosa. "Não precisava passar por isso" se tivesse
"ficado" com outro namorado, mais atencioso. "Encontrar o seu
caminho" significava se livrar do atual pilantra. Não subestimemos a dor
de corno, de quem sofre por amor.
Mas Laizinha pode ser também uma
"coroa", o diminutivo não quer dizer nada. A Dile, minha irmã, tinha
uma amiga no bairro de Aparecida, dona Alaíde, que morreu, já velha, com o nome
de Laizinha. Então, o velho com a cara do Serafim podia estar rezando por uma
irmã dele, Laizinha, que ficou viúva e "não precisava passar por
isso". O pedido para "encontrar o seu caminho", talvez estivesse
sinalizando para que ela fizesse como minha prima Rose que, depois de tirar o
luto de viúva, pintou o cabelo de louro e jogou charme pra cima do Djhones. Sem
sucesso, diga-se de passagem.
Enfim, Laizinha pode ser criança,
adolescente, adulta ou velha, mas o certo é que está passando momentos difíceis
- doença, abandono, humilhação, desemprego, depressão. Não importa. Juro que -
brincadeiras à parte - fiquei enternecido com o sofrimento do velho e da
Laizinha. Por isso, te peço, leitor (a), reza pela Laizinha, seja qual for o
sofrimento dela. Não custa nada.
O psicanalista italiano Contardo
Caligaris, que tem uma coluna semanal na Folha de São Paulo, escreveu há
alguns anos um artigo no qual afirma que, embora seja ateu, está convencido de
que a reza cura. Ele se apoia em artigos científicos do "British
Medical Journal", que comprovam os efeitos positivos da reza na cura
de diversas doenças.
- "Documenta-se que o doente
encontra benefícios (quanto ao andamento de sua enfermidade) no ato de rezar ou
na consciência de que seus próximos rezam por ele. Até aqui, tudo bem: o
paciente acharia assim uma paz de espírito que melhora sua evolução. A coisa se
complica: às vezes, as pesquisas mostram que a prece traz benefícios mesmo
quando alguém reza por um doente sem que ele próprio saiba disso. Como explicar
esses casos?"
Por via das dúvidas, interrompe,
ocupado folião, teu lazer dionisíaco, e reza pela Laizinha. Aproveita e coloca
no pacote a vesícula da Chachá que acaba de ser operada. Até meu amigo Tarcisio
Lage, um ateu emperdenido, é capaz de rezar, lembrando da dona Feliciana, sua
santa mãe, uma rezadeira de Abaeté, no interior de Minas Gerais.
*
Jornalista e historiador
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