segunda-feira, 2 de novembro de 2009




Cinco anos sem o senhor, meu velho!

* Por Mara Narciso

Onde está o senhor que não me responde? Insisto e o senhor, acordado e ao mesmo tempo adormecido em sua cadeira-de-rodas, demora a abrir os olhos. Então me mostra esse seu olhar vago, os olhos embaçados de velho. De velho doente há cinco anos. O que foi feito daquele orgulho todo, de não usar telefone público, de não entrar em ônibus, de se sentir melhor do que todos? A doença o envergou bem mais do que era preciso. Chegou a lhe quebrar a espinha ao meio. Foi além. Entrou no seu cérebro e o desfez em sangue. Foram cinco cirurgias “de cabeça aberta”.

Onde está aquela inteligência bem informada que sabia tudo? Uma única leitura do jornal diário ou da revista semanal era insuficiente para as certezas que sempre quis ter. Entendia, mas gostava de ir além do saber, e anotava infindáveis argumentações. As datas, os dados, os números. Claro, um honestíssimo contador entende de números, e sei que foi um profissional competente e ultra-correto. Não ouvi os inimigos discordarem disso. Burrice ou não, essa sempre foi uma unanimidade.

Mas seus inimigos bateram palmas – e não tiveram a decência de me esconder isso – adoraram o seu martírio. E não é um martiriozinho qualquer, mas uma penitência digna de um herói. O senhor merece esse suplício, dizem. E de roldão também recebo meu quinhão por merecimento. Pessoas de todas as religiões disseram, e eu que em nada creio, ouvi isso de todos. Estamos, o senhor e eu, pagando uma expiação. Fizemos alguma coisa grave e estamos pagando na carne.

Pois é, o senhor entendia de política e de economia. Quase todos os termos dicionarizados foram estudados pelo senhor. Bem mais do que uma obsessão, era um ponto de honra saber como se escrevia toda palavra, como era o seu emprego correto, e usando disso, o senhor escrevia cartas muito bem. Era implicado com o www da web e vivia repetindo o significado dessa e de outras siglas, uma outra mania.

Devido ao mau gênio em casa, perdeu o amor da esposa e dos filhos. Viraram as costas para o senhor, e acharam que com a doença eu deveria jogá-lo no lixo. Não, eu não fiz isso, continuei a minha acolhida começada anos antes. Não, eu não sou heroína de coisa alguma, sou apenas sua filha. E não escolhi cuidar do senhor. Fui escolhida pela falta de alternativa. Não, eu não gosto dessa missão. E quem é que gosta de cuidar de velhos doentes, tetraplégicos e acamados por tantos anos? A doença, assim como a morte, não cheira bem. Os odores ferem as narinas, mas é preciso suportá-los. Sim, por que não? Alguém haverá de suportar os nossos maus cheiros um dia. Ou vários dias ou vários anos, como tem sido a demora da sua doença. Padece o senhor e padece quem está junto, por obrigação. Eu, no caso. Não sou tampouco boazinha; sou interesseira. Cuido do senhor para mostrar ao meu filho como quero ser cuidada quando chegar a minha vez. Filho bom eu tenho, e me ajuda a cuidar do senhor.

Mesmo os seus amigos esqueceram do senhor. Quem tolera visitar um doente por cinco anos? Apenas eu, que de uma forma ou de outra perdi os irmãos, ou quem sabe, foram eles que me perderam? Não sou melhor do que ninguém não. Sou autora da minha vida e faço as minhas escolhas, só que eu sou a escolha de certos fatos que não escolhi.

Olha, o senhor foi esquecido por quem fez listas dos melhores do futebol de Montes Claros. É claro que entendi que o seu gênio ruim contribuiu para isso. Quem tem memória lembra que na década de cinquenta e sessenta o senhor foi grande, bem maior do que os seus 1,68 m, só que eu nunca acreditei que fosse essa a sua altura. O senhor foi um artilheiro dos bons. Mas não se lembram disso. Pelo menos para as listas não.

Sei que me comporto como se o senhor fosse um eletrodoméstico, onde é preciso dar manutenção, limpar e cuidar. Não faço isso por mal, mas é que os anos passam e a gente se cansa, esgotam-se tristezas, lágrimas e apreensões. Tive desesperos de todas as ordens e dimensões, e a fonte secou.

Evito pensar muito quando olho para o senhor. Observo a sua silhueta de velho doente e paralítico e penso de forma pragmática. Agora que se completam cinco anos de dor, e há três anos morando comigo, imagino o que pode ter se passado com sua mente. O senhor ainda pensa? A sua existência foi se esvaziando de tal forma a cada dia, que custo a imaginar que ainda sinta muita coisa. Ainda é possível gerar algum pensamento complexo aí dentro?

Ultimamente, todas as vezes que converso com o senhor, não obtenho nenhuma resposta ou sinal de emoção ou de comunicação, como algum tempo atrás. É como uma chama que foi se apagando. Depois das mil internações, por infecção urinária ou respiratória, a campeã, vejo que trago menos, e menos do senhor volta para casa. Após cada quadro febril, cada crise convulsiva, menos cérebro vai restando aí dentro da sua cabeça. Olho e não vejo nada do que era antes. O senhor não é mais o senhor.

Após as infinitas recaídas, e das atuais insuficiências respiratória e renal, posso dizer ao senhor que, ao contrário do que pensam os demais, a pior doença, não é a doença ruim de antigamente, aquela em que não se podia dizer o nome, senão acontecia com a gente. O câncer não é a pior doença. Depois do desamor, a pior doença é o derrame. Eu sei e o senhor também sabe disso.

Sigo o que aprendi com a minha mãe e o meu avô: respeitar aos outros. Isso eu faço, mesmo quando me sinto irritada. Não me tornei amarga e nem resignada. Também não me faço de vítima, e nem cultuo o sofrimento como moeda. Carrego o que consigo carregar, e se mais não posso, não faço. Largo para trás. Continuo sem muito levar, e sei que chegarei ao final da jornada com as mãos vazias.

Mas vou cuidando do senhor, meu velho!

*Médica endocrinologista, acadêmica do sétimo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

6 comentários:

  1. A lealdade das filhas ... a que se deve tanta doação? Saber que chegará ao final de mãos vazias e, ainda assim, continuar é de comover qualquer um. Quase incompreensível, pra lá de louvável. Por isso, meus parabéns pela pessoa, pela filha e pela escritora que vc é, cara Mara.

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  2. Mara,
    sei que não era essa a sua intenção, mas seu texto fez com que eu me sentisse " pequenininha". Não sei se teria a mesma " força" . A coragem. A tolerância. O espírito abnegado. Acredite, você o tem. Mesmo quando admite que faz para que seu filho faça o mesmo com você, caso termine como seu pai.
    Do seu sofrimento, tiro uma grande lição : Do que adiante tanto orgulho, tanta vaidade, mesquinharias, se resta quase nada do que somos ou fomos um dia ? Somos seres frágeis cheios de frescura.
    Para terminar, gostaria apenas de comentar um trechinho que você escreveu :
    "Estamos, o senhor e eu, pagando uma expiação. Fizemos alguma coisa grave e estamos pagando na carne"
    DIGO :
    Como você não acredita em nada, eu deixo uma frase para a sua reflexão : "Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas das nossas descgraças. " Shakespeare.
    Nem tudo é como se parece , Mara.
    Seu texto é lindo. Comovente. Tocante. E me fez chorar.
    Grande beijo !

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  3. Errata : Do que " adianta"....
    .....das nossas " desgraças."

    Completando : E você lá precisa acreditar em alguma coisa ?
    Você é um grande ser humano, sim. Raro . Melhor do que muita gente que vive falando em nome de " Deus".

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  4. Obrigada Daniel e Celamar pelos comentários. Quis ser verdadeira nas minhas colocações ficando longe da hipocrisia que geralmente cercam casos como o meu. Sei que acabo chocando algumas almas mais sensíveis, mas contei tudo quanto passei, pelas fases todas, até ficar como estou agora. Há dois dias falei com pai sobre o desejo de uma professora de História da Unimontes, Universidade Estadual de Montes Claros, de fazer um Museu do Futebol em Montes Claros. Acreditam que meu pai, que há meses não dá sinal de vida cerebral pensante, reagiu, abriu os dois olhos e apertou o senho como a dizer que estava me entendendo? Pois é...

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  5. Este é outro texto que já tinha lido por email, mas que merece releitura sempre. Envolvente e humano, com a marca registrada da Mara. Parabéns!

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  6. Obrigada Marcelo. A sua leitura é um estímulo e tanto.

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