segunda-feira, 23 de novembro de 2009




Digitalizaram até a escravidão

* Por Eduardo Murta

Tempos estranhos estes, em que a nova ordem mundial elegeu uma ambivalência um tanto curiosa para a vida. Desdobrar cada ser em dois. Rigorosamente idênticos, mas com missões ao avesso por aqui. As semelhanças vão da forma de olhar ao jeito de entabular as mãos, ao tom de voz, à maneira em roer as unhas. Um projeto de mil anos, burilado, talhado e moldado para funcionar sob absoluto controle.

O princípio inspirador era simples: se ao Homem faltava tempo para a plenitude do gozo, era justo livrá-lo daquele fardo. E assim foi feito. Num novembro chuvoso como este, a companhia máster em tecnologia anunciou seus primeiros programas de clonagem. Crianças, adolescentes, gente de meia idade, os velhinhos... Todos teriam um dublê mundo afora.

A Terra, assim, ficou assentada em duas extremidades. A dos que tinham obrigações e a dos predestinados à sorte de velejar, esquiar, fazer churrascos a qualquer hora do dia, varar em rodas de samba, ir ao cinema ou tomar sorvete ao meio da tarde, invernar em praias em pleno abril. Noutra ponta, a dos clones, o ofício de decorar equações matemáticas, fórmulas químicas, regras de português, trabalhar, pagar contas e perder os cabelos com infiltrações nas paredes ou a geladeira que queimou.

Se é que havia perfeição nessa engenharia, ela estava no fato de manter os “escravos brancos” alheios à rotina de puro ócio dos eleitos. E um megamapeamento digitalizado que jamais deixava se aproximarem dois corpos idênticos. O titular tendo a seu dispor uma tela linkada à ponta dos dedos. Num simples gesto era capaz de ver cada passo de sua sombra. Fila de banco, reunião de condomínio...

Logo as correntes heréticas decretaram que aquilo, sim, era o Éden. Porque, imaginem, a totalidade dos conhecimentos tinha transferência automática. E um filtro dissipava toda e qualquer brisa de preocupação. O desafio, como desde o início dos tempos, era enquadrar os desejos da carne, porque o sexo perdurava na lista dos itens que ainda dobravam as costelas do sistema.

Foi num desses voyeurismos virtuais que Wilson, degustando mojitos sob o sol das ilhas cubanas, invejou sua representação escrava. O clone com uma loiraça de parar a 5a Avenida. Tranças longas. Relevo de potranca. Peitos inquisidores. Coxas num veludo de fazer sonhar. Quase mergulhou tela adentro, acompanhando uma madrugada inteira de amar.

Ah, queria aquilo! Dia seguinte, era ele ao aeroporto de Confins, esbaforido, já planejando a tática de aproximação. Ignorou os sinais de alerta da central, a que mantivesse distância segura de seu igual. Binóculos, luneta com infravermelho, disfarce. Arquitetou ponto por ponto. E, imaginando a mulheraça sozinha em casa, encurtou tanto as distâncias, que, num flash, tudo se apagou.

Wilson foi realinhando os sentidos lentamente. Viu, primeiro, o conjunto de mãos e rostos ao seu redor. Depois, mesas, cadeiras, computador. O quadro de avisos. Era insano, mas tinha ido parar num escritório de contabilidade!?!?!? Só lá relembrou do artigo único da Lei de Clonagens – nunca viole as regras, ou assumirá o lugar do outro Eu.

Tarde demais. As paredes, o relógio, tudo era real. Balbuciou um “não sou eu” contínuo, um “me levem de volta” insistente, que os funcionários atribuíram a um delírio qualquer. O largaram depois, desolado. Noutro extremo, o ex-clone gargalhava, à terceira dose de marguerita nas praias do México. Brindando à loiraça em holograma, doce trapaça que o levara até ali.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


4 comentários:

  1. Adorei!!!!!!
    Prendeu minha atenção até o desfecho...será que todo homem é assim? rsrsrsr
    Parabéns!
    beijos

    ResponderExcluir
  2. Claro, claro, digitalizaram até a escravidão. O Sistema assimila, mas não perdoa. Um jeito 'democrático' de perpetuar a servidão com uma aparência, digamos, mais light. E a gente gosta, né? A gente gosta muito disso! Texto dos melhores que vc escreveu recentemente, Murta. Parabéns.

    ResponderExcluir
  3. Gostei muito. O que não se faz para ser feliz e depois se percebe que era pura ilusão?
    Parabéns!
    Bjs

    ResponderExcluir
  4. Muito louco. Ninguém sabe quem é quem. Por muito menos ficamos insanos.

    ResponderExcluir