terça-feira, 24 de novembro de 2009




Dia dos Pais ao avesso

* Por Mara Narciso

Quando voltávamos da enésima internação hospitalar do meu pai, sendo todas elas com quadros gravíssimos como convulsões, comas, insuficiência respiratória, hemorragias, infecções e outras causas de morte iminente, meu então marido falou:
-Seu pai é “imorrível”.

E não deixa de ter razão. É internado em estado lastimável, para alguns dias depois voltar em situação crítica, mas estável. O hospital só fica com o doente quando este corre risco de vida, ou risco de morrer – a invencionice da mídia. Pois é, caso ele morra algum dia, não avisarei aos demais. É que ninguém o visita, ninguém pergunta por ele, ninguém telefona e nem quer saber dele. Para que ampliar essa penitência de quase cinco anos? Não haverá velório, nem encomendação da alma. Morrendo, será colocado no caixão, esperarei sozinha as seis horas regulamentares e nada mais. Apenas a viagem derradeira, e a missão estará cumprida.

Meu pai não foi o monstro que querem que eu acredite que ele foi. Quando éramos crianças íamos jantar fora quase todas as noites, hábito incomum em Montes Claros da época. Geralmente íamos comer no restaurante Mangueiras, na Rua Dr. Santos. Ficava nos fundos do terreno, debaixo de árvores, e tinha uma pista de dança feita de tacos, no centro do local. Eu era tão pequena que não alcançava a altura da mesa para comer. Então o garçom colocava uma caixa de goiabada sobre a cadeira e eu ficava sentada sobre ela. As comidas que eu mais gostava eram salada mista, purê de batatas e filé a cavalo.

Pai jogava futebol no time do Casimiro de Abreu, tinha uma loja de roupas na Rua Simeão Ribeiro – A Parisiense –, e morávamos num apartamento alugado na Rua Carlos Gomes. A cidade tinha uns poucos prédios de três andares, e as pessoas ficavam impressionadas de a gente morar engaiolados. Íamos a pé para o Colégio Imaculada Conceição, onde eu e meu irmão estudávamos. Éramos pobres, mas pai pagava escola para nós, desde o jardim de infância, coisa também rara. Fui para aulas de natação na Praça de Esportes aos sete anos e aulas de violão no Conservatório Lorenzo Fernandez aos dez anos.

No fim de semana pai costumava descascar cana para nós, ou abrir melancia, ou ainda jogar pião conosco. Algumas vezes passava todo o fim de semana brincando. Ao entrar em casa, sempre colocava música na radiola. Tinha uma grande coleção de discos e à noite ia ao cinema com minha mãe pelo menos duas vezes na semana. De lá nos trazia drops Dulcora, balas de goma, e um chocolate delicioso embrulhado em papel dourado formando rodinhas.

Quando eu tinha oito anos, meu pai desistiu de ir ao Rio Grande do Sul com um casal amigo, para, ao invés disso, nos levar para um passeio na praia. Fomos de ônibus a São Paulo, Santos, Guarujá, Rio de Janeiro, Juiz de Fora e Belo Horizonte. Foi um programa totalmente infantil, desde os filmes – Flipper, Mazaroppi –, o cinema em tela ampla, o cinerama, passeios no Mappin, além de um diário de bordo que ele nos estimulou a escrever e que guardo comigo ainda hoje.

Depois se acentuou a fase dos clubes campestres. Íamos a Lagoa da Barra ou Max-Min sábado, e Pentáurea domingo. Todas as semanas. Quando fiquei moça era preciso ir, senão ele não me permitira ir à matinê das quatro (16 horas, no Cine Fátima, ou no Cine Montes Claros).

Mas o desejo da nossa companhia deu lugar a uma implicância de nos querer por perto para nos vigiar e nos oprimir. Enquanto mantinha o controle, mostrava ao mesmo tempo frieza e indiferença. Isso fez meus irmãos e eu ficarmos a cada dia mais distantes.

Meus pais se separaram após 31 anos de infeliz união, e pai constituiu nova família. Sumiu por nove anos, mas precisou de nós e então voltou. Anos depois adoeceu e ficou para mim o ônus de cuidar dele. A doença nos aproximou e aconteceu em mim um afeto gestado na mais terrível dor.

Cá estou eu, pensando no próximo Dia dos Pais, quando os filhos se voltam para os seus progenitores com admiração, contando aos demais como eles foram pessoas boas. Eu sempre quis ter um pai assim, para poder lembrar. Então eu vou fundo no baú de lembranças. Cato lá embaixo as coisas boas que aconteceram. Coloco por cima dos maus momentos, dos fatos desabonadores do meu pai, misturo tudo, cubro com papel de presente, e dou um laço. Então olho para ele, tetraplégico, colocado na cadeira de rodas, inerte em frente à televisão. Os olhos não mais se abrem e nem a boca se fecha, pois lhe falta força muscular para isso. Meu velho pai, de 78 anos, come por uma sonda no estômago, tosse sem parar, não tem prazer algum, não sabe de mais nada, mas eu sei quem ele foi: um pai apenas, nada mais.

* Médica, acadêmica do sétimo período de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

5 comentários:

  1. É preciso aprender a dizer 'não', e quanto mais cedo melhor. Do contrário, acostuma-se ao calvário, e o que era pra ser só dor vira estilo de vida. Não é justo, não mesmo.

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  2. Mara, o que dizer do seu texto? Quando falas que sobrou pra ti a incumbência de cuidar do seu pai, fiquei pensando em minha mãe que se foi com uma enorme sensação de culpa, pois quando seu Davino(pai dela), começou a cair e perder toda a noção de espaço por conta da cegueira, as irmãs se juntaram e optaram por colocá-lo num asilo. Em minha casa não havia espaço para acolhê-lo. Minha mãe se culpou até o resto dos seus dias e por tabela nos culpou também...
    Concordo com o Daniel, não é justo, não mesmo.
    beijos

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  3. Lindo texto, um verdadeiro atestado de amor incondicional. Arrepiou, Mara. De verdade. Parabéns.

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  4. Que texto forte e comovente, Mara. Senti cada palavra, cada linha do seu texto, pois foi essa realidade que vivi durante oito anos, cuidando da minha mãoe e do meu pai.vivendo dezenas de internações, UTIs, etc.
    E sinto que fiz uma pós-graduação de vida. O que aprendi naqueles anos, nenhuma escola, nenhuma faculdade me ensinou. Aprendi ali, na raça. E por incrível que pareça conseguia criar um clima alegre, ria do que acontecia, porque nada mais me restava senão rir. Houve situações que só Chaplin conseguiria inventar. Mas não inventei nada. Vivi tudo aquilo. E sinto muita paz quando me lembro. A paz que nos dá saber que cuidou dos entes amados. Que não os entregou às instituições onde talvez fossem maltratados.
    Parabéns pelo texto.

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  5. Daniel, Núbia, Marcelo, Risomar, agradeço os comentários. Não é justo cuidar dessa carga, como também não é justo sofrer tanta dor como meu pai sofre. O texto foi escrito há seis meses. Não consigo rir Risomar, mas longe estou de me sentir amarga. Estou tranquiila e totalmente adaptada. Meu filho reconhece integralmente o meu esforço e isso conta muito. Obrigada gente!

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