terça-feira, 17 de novembro de 2009




O Simca cor-de-rosa

* Por Risomar Fasanaro


Era um Simca cor-de-rosa. Nada menos. Nem verde nem azul. Cor-de-rosa. Olívia, recém-casada, ganhara o carro de presente do marido, e nós íamos com ela para todo lado. O Simca levava quatro moças. Todas entre os 18 e os vinte anos. Eu era uma delas.

Acostumadas com os salões de beleza de Osasco, resolvemos ir ao Jacques Janine, no centro de SP, fazer limpeza de pele.

Já no caminho, um guarda de trânsito pediu para parar, e antes de pedir os documentos olhou o interior do carro e comentou sorrindo: um Simca cor-de-rosa com quatro rosas... Fosse hoje, consideraríamos elogio barato, naquela época não foi.

Era um rapaz alto, moreno de cabelos escuros, muito bonito. Aliás, sempre me pergunto se fazem concurso de beleza para o ingresso na polícia rodoviária. Será?

Ele pediu os documentos à Olívia, e duvido que tenha examinado direito, pois sempre sorrindo, perguntava tudo: aonde iríamos, onde morávamos...

No Jacques Janine demos à dona do carro o privilegio de ser a primeira. Enquanto isso ficamos por ali percorrendo o salão.

Vi uma esteticista francesa atendendo uma senhora de uns cinqüenta anos e fui até lá. A moça colocava um produto em volta dos olhos da cliente, e eu, que já era uma perguntadeira, quis saber o que era. Com um português afrancesado, ou um francês aportuguesado, ela me disse que era hormônio. E pra que serve? Para atenuar as rugas, respondeu. “A senhora depois coloca em mim?”, perguntei.

A esteticista me olhou dos pés à cabeça, com aquela expressão de vendedora de loja do shopping Iguatemi quando quer nos humilhar, e me respondeu: “vai demorar muito tempo pra você precisar disso, ma chérie...”

Saí dali sem graça e fui me juntar às outras três, que estavam em volta da esteticista que atendia Olívia. Elas três cobriam a moça de perguntas.

Cheguei exatamente no instante em que Flor-de Liz perguntava à esteticista: “a senhora acha bom lavar o rosto com sabonete Palmolive?”

A moça olhou para minha amiga com expressão de horror. E como se ela houvesse dito que acabara de matar alguém, respondeu: “Jamais”. Mas não pronunciou esse jamais brasileiro que a gente usa todos os dias. Disse em francês: “Jamé!!! Jamé!!!” E senti que aquele jamé tinha sido pronunciado com todas as letras maiúsculas. Mas não apenas isso. Que era seguido de muitas... Infinitas exclamações...

E minha amiga inocentemente justificou: “mas na televisão falam que é bom...”

E a esteticista iniciou todo um discurso, dizendo que nunca seguisse o que se aconselha na tevê. Que lavar o rosto com sabonete é um crime. Que toda mulher deve usar creme de limpeza, seguida de loção tônica...e que sabonete só no corpo. E repetiu isso várias vezes. Foi tão forte aquele ensinamento que até hoje, mesmo que chegue de madrugada, não durmo sem limpar o rosto com creme de limpeza e loção tônica, antes de passar creme nutritivo.

Mas nem cinco minutos depois Olivia, ainda com uma máscara no rosto, perguntou à moça: “e que creme para engrossar as pernas a senhora aconselha?”

Uma olhou para a outra e ficou à espera da resposta. Senti vontade de rir, mas me segurei.

A esteticista parou tudo, respirou fundo, e se dando conta de que estava diante de quatro caipiras de Osasco, de quatro mulheres completamente ignorantes, sobre os poderes de uma esteticista, e dos cremes, disse: “minha filha, não existe nada, nada, nenhum creme que possa fazer um milagre desse.”

Pena que a essa altura ela já deve ter partido desse planeta. Fosse hoje poderia indicar um cirurgião plástico, que implantasse silicone nas pernas de minha amiga.

E para finalizar o atendimento, como se quisesse nos colocar em nossos devidos lugares, talvez até com inveja de nossa juventude, após a limpeza de pele aplicou talco no rosto de cada uma de nós. Talco Johnson, aquele mesmo que as mães usam nos bebês...E saímos as quatro com aquele branco-gueixa nas faces, em pleno trânsito de SP. Humilhadas, entramos de novo no Simca cor-de-rosa e voltamos a Osasco.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

Um comentário:

  1. Viver na periferia deixa marcas que sempre vêm à tona, mesmo que a pessoa corra mundo e se globalize. Isso pesava mais, quando o país pertencia a meia dúzia, mas agora assistimos ao advento das grandes massas que começam a impor o seu modo de ser. Melhor assim, talvez. Já não se passa tanta vergona. Somos o que somos, e ponto. Pelo menos, o guarda percebeu que vcs eram bonitinhas. Isso, ao menos, valeu ... da mesma forma que valeu a leitura desta crônica cheia de sabor urbano. Parabéns, Ris.

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