segunda-feira, 30 de novembro de 2009




Um bilhete a Pasárgada

* Por Eduardo Murta

S
oubesse, Fernando certamente não teria viajado. Porque aquilo contrariava todo seu receituário de vida: dar com o imponderável. Logo ele, um racional com pós-graduação em pragmatismo e cético a ponto de crer que só era mesmo real aquilo que pudesse ser tocado. Estava a meio caminho de ser posto à prova.

Havia mesclado livros de física quântica, leis tributárias e, tentando variar, um Manuel Bandeira à bagagem. O inverno das serras mineiras lhe esperava. Reservas feitas um ano antes, roteiros já definidos, embarcou. Veio o primeiro sinal de descompasso: atraso de voo, perda de conexão. O segundo: um quarto fora dos padrões prometidos pela pousada. Por fim, um terceiro: queda de energia e banho forçosamente gelado.

Três dias, e Fernando, doutrinado em regras rígidas de limpeza, flagrara os vestígios de novo incômodo: bicho de pé!!! Definitivamente, excluiria aquela viagem de suas aventuras inesquecíveis. Pensando bem, a morena em leitura na varanda talvez pudesse reenquadrar sua sorte. Bela, cabelos alongados. Estudou a aproximação. Notou a ausência de aliança, como nele. E a mirada atenta às páginas de um velho e nobre conhecido, Shakespeare.

Estava ali a senha para a incursão com ares de casualidade. Repassou o script, planejando uma conversa informal, uma troca de impressões, um convite para o vinho, o jantar... Foi que ela julgou-lhe ensaiado em demasia, careta para além da conta, aborrecidamente previsível. E disse não! Espanto para o executivo que tinha séquito de pretendentes a seus pés.

Juntou os cacos da decepção e se recolheu. Naquela noite, por impulso, abriu mão dos tratados científicos, da liturgia técnica, e pela primeira vez mergulhou em Bandeira. Meio que em busca de um porto. Foi tateando as letras, até dar com significados transformadores em “Vou-me embora pra Pasárgada”. Perscrutou à volta, porque, jurava, aquilo (“lá sou amigo do rei... a existência é uma aventura... é outra civilização... montarei em burro brabo... tomarei banhos de mar... aqui eu não sou feliz...”) tinha sido feito para ele.

Achava que era a síntese de todas as provações a que fora submetido naquela sequência que soava infernal. Daí reagiu como se houvera sido apresentado à pólvora naquele instante. Todos seus sentidos entrando em curto-circuito. Programou peregrinações à caça do poeta, e duvidou dos que atestavam sua morte, num distante 1968.

Se não o autor, alguém que lhe respondesse em que ponto da terra se escondia a tal Pasárgada, que mapa algum desvendava. Interpretou como simplória a afirmação de que não se tratava de um lugar, mas de um estado de espírito. Demasiadamente vago. Experimentou terapia, sexo tântrico. Incursionou pela ioga, ácido lisérgico, jejum e promessas. Nenhuma pista. Amigos já o vislumbrando com bambeza no cérebro.

Mais ainda quando decidiu publicar nos jornais e difundir na internet generosa recompensa a quem desnudasse o mistério. E ao financiar pesquisas acadêmicas nessa linha. Foi que, naquela quarta, desbandeirou por inteiro. Aboliu o terno. Largou carro em casa, seguiu de ônibus. Parou no centrão. Encomendou caldo de cana e pastéis na lanchonete vizinha à rodoviária. Se preparava para comer, e deu com a mão estendida. Enrugada, quase pálida. Mãe e três meninos pedindo. Esquálidos. Pensou em enxotar, exigir sossego. Mas condoeu-se. Cedeu a refeição. E naqueles seis olhos agora brilhando, Fernando viu, enfim enxergou. Neles havia Pasárgada. E como havia.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

2 comentários:

  1. Pasárgada seria um mergulho? Um lugar?
    Depende de como se procura, na verdade
    ela está ali...dobrando a esquina.
    Adorei!

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  2. Cotidiano de uns, Pasárgada de outros ... a depender do critério que faz realmente toda a diferença: a necessidade. Parabéns, Murta.

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