quinta-feira, 5 de novembro de 2009




Bonecos de ventríloquos

* Por Pedro J. Bondaczuk

A longa experiência jornalística demonstrou-me a impossibilidade de retratar, com milimétrica exatidão e absoluta fidelidade, o que as pessoas entendem por “realidade”. Há um surrado clichê, repetido ad náusea nas redações, que diz: “contra fatos, não há argumentos”. Mas será que não há mesmo?

É pitoresco como as versões, em torno de um mesmíssimo acontecimento, variam, dependendo de quem os narra. Certa feita, fiz uma experiência que me marcou bastante como editor. Designei três repórteres diferentes, com formações, idades e experiências variadas, para cobrirem um mesmo evento. Dois eram homens e uma era mulher. As idades variavam de 25 a 50 anos. A mocinha estava conosco há apenas dois anos e o profissional veterano tinha quase trinta anos de janela.

O resultado foi dos mais surpreendentes. Nem parecia que os três haviam coberto o mesmo acontecimento, tão diferentes eram suas versões. Como naquele tempo não contávamos ainda com o recurso do computador e as matérias eram datilografadas, guardei os três originais das reportagens comigo e volta e meia, passadas duas décadas da experiência, releio-as e as analiso meticulosamente e ainda hoje me espanto.

Portanto, essa história de que nós, jornalistas, somos os “fiéis” relatores da realidade, não passa de balela. O que trazemos ao público é a nossa “versão” dos acontecimentos que não é, necessariamente, o retrato fiel do fato.

Há quem diga que as imagens refletem com absoluta fidelidade o que aconteceu. Retruco que nem estas. Elas dependem do ângulo que o fotógrafo, ou o cinegrafista enfocou. Num deles, as coisas parecem de um jeito, em outro, de outro bastante diferente. A conclusão fica, sempre, por conta do leitor de jornal ou do telespectador. E estas nem sempre (diria que nunca) coincidem.

O assunto coberto na “experiência” que mencionei foi uma tentativa de seqüestro, por parte de um marginal, fugitivo da cadeia, seguida de cinematográfico resgate por parte de um policial, que redundou na morte do seqüestrador.

A repórter feminina atentou para detalhes que escaparam do olhar masculino, como o traje dos personagens, a cor da blusa e da camisa da vítima e do agressor respectivamente, em que momento o agente da lei sacou a arma e quantas e quais eram as testemunhas do fato.

O profissional veterano, por seu turno, narrou o início do seqüestro, mas violou as normas da boa reportagem insinuando opiniões pessoais a propósito da falta de segurança da população. Seu texto foi mais opinativo do que descritivo. Caso assinasse, bem que caberia como artigo, na editoria de opinião.

Já o repórter do meio, nem tão verde quanto sua colega, nem tão experiente quanto o companheiro cinquentão, identificou nominalmente os agentes do drama (o que os outros não fizeram). Foi parcimonioso nas palavras, não utilizou um único adjetivo e aplicou todas as normas do malfadado Manual de Redação.

O lead estava completo e a salvo de reparos, com os respectivos subleads presentes no texto, além dos antecedentes e os conseqüentes da notícia. Tecnicamente, sua reportagem estava perfeita. Mas faltava-lhe alma, vibração, emoção, tesão de fazer um bom jornalismo. Nem parecia que estava se referindo a pessoas, mas a objetos inanimados e descartáveis.

Qual das três versões vocês acham que publiquei? Com alguns reparos, aqui e ali (como a identificação dos personagens), alguns consertos em errinhos básicos de português (como a colocação de crase em masculinos), minha escolha recaiu na matéria da repórter inexperiente, mas que demonstrou que ainda não fora contaminada por determinados vícios de quem já perdeu a gana pela competição.

O escritor Aldou Huxley compara os fatos a um boneco de ventríloquo. Sua narração depende de em quais “joelhos” eles estão “sentados”. Ou seja, de quem lhes dará voz, movimentos, vibração e vida.

Portanto, não me venham com essa balela de que não se pode argumentar contra “narrativas” dos acontecimentos. Mesmo os que testemunhamos, nos parecem de um jeito em determinado momento e de outro, bem diferente, em outra ocasião. Vemo-los de uma forma no calor da emoção e de outra, não raro até oposta, quando temos a oportunidade de racionalizar.

Por isso, não vejo como desmentir Huxley quando afirma: “Os fatos são como bonecos de ventríloquos. Sentados no joelho de um homem sábio articularão palavras de sabedoria; noutros joelhos não dirão nada ou dirão disparates, ou comprazer-se-ão em puro diabolismo”. Portanto, o que vemos, lemos e ouvimos, diariamente, nos meios de comunicação, não é a realidade, nua e crua, como querem nos impingir, mas (talvez salvo alguma exceção que, todavia, não me ocorre neste momento) meras “versões” de como ela “aparenta” ser.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

2 comentários:

  1. Não há dúvida, cada qual tem a sua versão do fato. Por isso, objetividade, imparcialidade, só os ingênuos acreditam. E o jornalista escreve conforme espera o jornal, ele intui isso, embora tenha a iusão das idéias próprias. O jornalista sabe em que joelhos está sentado.

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  2. Os fatos e as versões correm pareados, mas não exatamente juntos. Mesmo quando presenciamos um fato, temos a nossa visão, exatamente pelas experiência de vida que tivemos. Ainda mais diferente será quando alguém que viu nos narra e ainda há as mudanças da fala em cima do estilo do repórter. Assim, até aqui já temos algumas verdades. Outras aparecerão a medida em que mais gente for editando e diagramando essa verdade.

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