Os
Beatles em Niterói: um dia, um gato
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“Here
comes the sun
And
I say
It's
all right
Little
darling
The
smiles returning to the faces”.
Ninguém
suspeitava que um gato no Amazonas poderia um dia levar os Beatles a
restituir o sorriso a Niterói. Tudo começou em 1965 quando Manaus,
então porto
de lenha,
queria ser Liverpool e sonhava com meninas
sardentas de olhos azuis desfilando
na rampa do Teatro Amazonas. Foi lá, na banca de jornal da praça
São Sebastião, hoje elevada bestamente à categoria de “largo”,
que um menino de 11 anos viu o retrato dos Beatles na capa colorida
da revista Fatos
e Fotos.
-
Kinto Beatle! – ele exclamou.
Geraldo
Bessa, o menino, havia acabado de batizar seu gato mimado, um felino
tigrado, alaranjado e branco, que fazia a alegria dos moradores do
bairro de São Jorge, onde morava.
Num
dia chuvoso, seu vizinho da mesma idade e com o mesmo nome –
Geraldo Sá Peixoto, hoje renomado doutor em História - avaliou que
o Kinto Beatle estava muito tristinho, ronronando queixoso aqui e ali
no fundo do quintal. Os dois Geraldos confabularam, fizeram uma
“junta médica” e decidiram injetar alegria no felino através de
uma “experiência científica”. Botaram gasolina no tubo de uma
seringa de injeção e aplicaram-lhe uma dose de alta octanagem.
A
gasolina era das boas. O Kinto Beatle, muito doidão, saiu em louca
disparada pelas ruas do Conjunto dos Comerciários. Se estivesse no
GP do Mônaco ultrapassaria Ayrton Senna. Embora a primeira reação
tenha sido de desconforto, parece que ele gostou do barato, porque
com certa frequência vinha espontaneamente pedir aos seus
“enfermeiros” para “encher o tanque”. Viciou. Cercado de
carinho, morreu de velho e não de overdose, mas de qualquer forma,
você que me lê, não tente fazer o teste, pode ser fatal.
E
o que Niterói tem a ver com essa história? Tudo.
Os
Power
Acontece
que Djewry Power – nome artístico adotado por um dos Geraldos - se
mudou com viola e cuia para Niterói. Diplomou-se engenheiro e casou
com Taninha para quem compôs Casinha -
uma romântica canção de amor com um final inesperado. Confiou os
três filhos – Rodrigo, Daniel e Júnior – a Orfeu, que lhes fez
descobrir os Beatles, a quem passaram a amar e cultuar através da
banda Calangles que
há cinco anos, sempre na última semana de agosto, participa da
International
Beatleweek em
Liverpool, berço de tudo, tocando no Cavern
Club com
70 bandas do mundo inteiro.
Foi
aí, depois da peregrinação realizada à meca dos beatlemaníacos,
que o casal Rodrigo Bessa e Jessica Abreu, criadores da Calangles,
se deram conta de que a população de Niterói, conhecida como
cidade-sorriso, anda muito tristinha, como aliás a de todo o Brasil,
mergulhada em tenebrosa escuridão. Diante de tão pouca luz,
decidiram acender o farol e dar uma injeção de Beatles na cidade.
Encorajados pela memória do Djewry Power, que nos disse adeus antes
do combinado, organizaram a 1ª Niterói
Beatleweek.
Uma
turma presepeira da Prefeitura de Niterói jurou que apoiaria o show,
mas depois bateu fofo e mijou fora do penico, justamente quando as
bandas convidadas já haviam confirmado presença e que Liverpool
havia dado seu aval endossado por Julia Baird, irmã do John Lennon,
amiga - assim oh (esfrega os dois dedos indicadores) - de Jessica
Abreu, professora de inglês em Niterói. No entanto, quem é
destemido pode desTemer, ousando.
-
Vamos fazer a festa assim mesmo – anunciou o audaz Rod Power.
Buscou patrocínio do Polo Gastronômico de São Francisco. A
banda Bezzouros pagou
a confecção das camisas e as demais bandas se ofereceram para tocar
de graça. A notícia bombou nas redes sociais. Diante da
repercussão, dois dias antes, a Prefeitura de Niterói aderiu, cedeu
equipamentos de som, palco, iluminação e apoio logístico da equipe
do réveillon. Pronto: Here
comes the sun. Os
Beatles, enfim, chegaram.
Yeah
Yeah
Cerca
de 15 bandas se revezaram em dois palcos sábado (2) e domingo (3) na
orla de São Francisco, tendo ao fundo a baía de Guanabara
escandalosamente deslumbrante. Tocaram grupos que já se apresentaram
em Liverpool, alguns do Rio, um de Florianópolis, além de alguns
feras que fizeram a alegria de um entusiasmado público.
Velhos
nostálgicos, coroas de meia idade, jovens e crianças, muitas
crianças, participaram cantando, dançando, ouvindo as músicas dos
Beatles, como se todos compartilhassem lembranças de um passado
edênico. O ato de rememorá-los parecia, com todo respeito, a
celebração da missa. “Fazei isso em memória de mim”.
Quem
estava sendo evocado ali não eram apenas os rapazes de Liverpool,
capazes de arrancar lirismo dos pequenos gestos cotidianos, mas todo
um modo de vida, que ao reivindicar paz
e amor,unia
gerações apostando na utopia de um mundo solidário, generoso. As
músicas dos Beatles tocadas em Niterói funcionaram como antídoto
contra a gang fedorenta e sebosa no poder: temer, padilha, moreira et
caterva, para não falar no repelente trump.
A
qualidade dos músicos, o repertório, o equipamento de som, a
facilidade de locomoção entre um palco e outro, um tempo mínimo de
espera para cada banda se apresentar, a proximidade do público com
os artistas em palcos de fácil acesso, além da comida barata e de
banheiros limpos que não se encontram no Rock in Rio – tudo isso
permitiu avaliar o evento com nota 10. Por isso, o prefeito Rodrigo
Neves já determinou sua inclusão no calendário oficial de Niterói,
que atraiu gente até da cidade do Rio.
Lullaby
Lá
do Rio veio minha neta Ana, 7 anos, trazendo sua amiga Laila, da
mesma idade. Foi ela que me levou para curtirmos, juntos, a música
dos Beatles, o que fortaleceu nossa cumplicidade. Sentamos na ponta
do palco, em lugar cedido generosamente para um velho e duas
crianças, na maior intimidade com os músicos.
-
Vovô, será que eles vão cantar “Here
comes the sun”?
Cantaram.
Ela, que surpreendentemente sabia a letra, os acompanhou, com uma
pronúncia melhor do que a minha e a do Joel Santana. As duas
pediram “Help” e
“Yellow
Submarine”. Não
conheciam, porém, “Golden
Slumbers”.
Quando souberam que lullaby era
canção de ninar, Laila, que levou sua boneca, começou a
acalentá-la no seu colo:
Sleep
pretty darling, do not cry
And
I will sing a lullaby.
Tentei
fotografar e filmar a cena cativante, cheia de ternura, mas o
celular, egocêntrico, só tirava fotos de mim mesmo. Apertei sem
sucesso todos os botões para reverter, mas quando minha neta me
ensinou como usar aquela geringonça, Jessica Power já estava
cantando outra música, aplaudida por Taninha que, no meio da
multidão, parecia mãe de miss de tão eufórica. No final, Ana fez
o que eu queria, mas não tive coragem: pediu um autógrafo do Rod
Power. O Kinto Beatle e o irreverente Djewry, lá onde estão, devem
estar exultando.
P.S.
1 “Um dia um gato” é um filme tcheco da década de 1960 que me
fez lembrar o Kinto Beatle. O gato usa óculos e pode enxergar as
pessoas de acordo com o caráter de cada uma. Só ele vê. O corrupto
tem cor cinzenta, o falso é amarelo, o hipócrita é roxo, o
criativo apaixonado é vermelho. Rod Power é vermelho e
não usa espelho pra se pentear.
P.S.
2 – No mês passado, Rod Power lançou o CD “O Catador de
Poemas”, com letras que ele musicou de José Cyrino, um puta poeta
amazonense. Vale a pena curtir esse som.
P.S.
3 – Quem tocou na Niterói Beatle week: Calangles e Bezzouros
(Niterói), Bluebeatles e Gui Lopes (Rio), Sonido Club de
Florianópolis (SC) e outros como Camacho Trio, Sonzera Clube,
Teachers on the Rocks, Dr. Ones, Casal Beatles e Evandro Halabey,
além de um show de feras: Carlos Malta, Fernando Moura, Tim
Reynolds, Glauco Velloso, Daniel Almeida e Dany Power.
*
Jornalista e historiador.
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