sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A religião e a exteriorização dos sentimentos


* Por Luís Valente Rosa


O Natal, para mim, simboliza a concórdia entre os homens, o tempo em que abandonamos todas as nossas lutas fratricidas exteriores, esquecemos a violência do mundo, voltamos para o interior de nós – normalmente para junto dos que mais amamos – e procuramos a paz. É este o meu «espírito de Natal».

Não sendo crente, a única coisa que me leva a suportar as compras por atacado (para além da pressão dos outros para que se cumpra a tradição) é a promessa de ver gente feliz, sobretudo as crianças, e de reunir em harmonia os que a vida, por vezes, separa.

Neste Natal, porém, somos especialmente confrontados com o horror da barbárie dos radicais islâmicos. E, não querendo ir, passado adentro, à procura de causas e de comportamentos semelhantes por parte dos não-islâmicos – de fato, penso ser muito importante concentrarmo-nos no futuro e esquecer o passado, de outra forma não sairemos nunca de um círculo vicioso de vingança –, pergunto-me se a reserva, para o absoluto privado, das nossas convicções religiosas íntimas não poderia ser solução para uma pacificação futura. Isto, porque, na minha opinião, a fé religiosa é, e deve ser considerada, um fenômeno íntimo, privado, pessoal. Penso até, às vezes, que se pode manifestar de formas totalmente diversas do habitual, por exemplo quando um não crente como eu endeusa ao exagero um Vergílio Ferreira, um Rembrandt ou um Keith Jarrett. Assim, e porque nunca me lembraria de fazer, com a família toda, uma festa anual comemorativa do nascimento do Vergílio (28 de Janeiro, para que conste), também me interrogo profundamente a respeito das festividades exteriores que celebram os nossos outros sentimentos pessoais, incluindo os religiosos.

Por ter andado num colégio inglês, sou muito sensível a esta questão da exteriorização dos sentimentos. Apesar de alguma «snobeira» inglesa ter inventado pequenos artifícios para identificar a classe social de uma pessoa (a começar pelo vocabulário e pela pronúncia), temos de reconhecer que eles têm tentado – talvez mais do qualquer outro povo que eu conheça – impedir que o exterior público identifique o que se passa no interior privado. Dou dois exemplos: a tradicional «fleuma» britânica: a pessoa não pode pestanejar, nem que lhe caia um andaime em cima; e a uniformização da roupa (todos os gentlemen andam mais ou menos vestidos da mesma maneira), a começar pelas fardas dos colégios, para não existirem exibições de status.

Muito bem. A minha ideia é simples: uma vez que a religião é usada por muitas comunidades e muitos povos como razão para o ódio e para a violência, não deveríamos nós evitar as manifestações coletivas exteriores de raiz religiosa, mesmo no seio da família, de modo aos indivíduos não exibirem sinais exteriores que os identificassem com uma qualquer religião, ajudando assim ao cumprimento dos objetivos mais elevados do «espírito de Natal» (interiorização e paz)?

Falo da família porque – já o escrevi aqui há algum tempo – me preocupa o condicionamento que fazemos das nossas convicções adultas junto das crianças. Vou por isso terminar recordando uma cena do filme «Gandhi», que me parece elucidativa. No início da divisão entre a Índia e o Paquistão, começaram as chacinas entre hindus e muçulmanos – como é próprio dos povos que têm excesso de religiosidade e defeito de humanidade. Um dia (no filme, claro), um hindu veio ter com Gandhi a chorar por ter medo de ir para o Inferno, uma vez que tinha assassinado uma família muçulmana, nomeadamente o filho de cinco anos desta. E fê-lo, porque muçulmanos tinham, dias antes, assassinado o seu próprio filho, também de cinco anos. Gandhi disse-lhe então que conhecia uma maneira de ele não ir para o Inferno: teria de procurar um menino órfão e abandonado, de cinco anos (depois dos motins, havia-os aos montes), e criá-lo como se fosse seu filho. Mas, acrescentou Gandhi, com olhar iluminado: teria de escolher um menino muçulmano. E deveria educá-lo como um muçulmano…

Era certamente neste momento, quando o filme passou no cinema, que as pessoas soltavam um «Ahh…» sonoro e dorido de comoção perante tamanha grandeza de alma. Mas eu revoltei-me: o que é uma criança órfã de cinco anos, muçulmana? Como é possível uma pessoa atribuir-se o direito colar um rótulo destes a um inocente? Quanto passado que nos é alheio temos nós de carregar às costas? Se fosse uma guerra entre fascistas e comunistas, imagina-se o Gandhi a dizer ao comunista para procurar uma criança órfã de cinco anos, fascista?

Há uns dias, andava nas compras Natal e tropecei na grande frase de George Bernard Shaw: «life is not about finding yourself; life is about creating yourself» (mal traduzido, será: «o objetivo da vida não é encontrarmos o nosso eu, mas criarmos o nosso eu»).


* Escritor português, autor do livro “O homem novo”.


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