Sem
teto
* Por
Mara Narciso
Depois
de um tempo fora de casa, por viagem ou trabalho, voltar, tomar um
banho, comer, fazer algo relaxante, e enfim, se deitar, não é
tudo, mas é bom. Sinta-se privado disso por uns dias e entenderá
o que vem a ser chegar a hora de descansar e não ter para onde ir.
Um
dia alguém teve um lar, mas foi expulso pelas circunstâncias,
pobreza, droga, álcool, desilusão amorosa, desemprego, brigas,
alguns dos múltiplos caminhos da ruína social. Largado no
desconhecido, tem de morar na rua, dormir ao relento abraçado às
ameaças noturnas e diurnas, chuva, frio, pancadas morais como
rejeição, exclusão e físicas como sujeira, fome, espancamento,
perda da vida. Dentro da guerra, não é permitido repousar, se
esconder dos olhos alheios, ter privacidade, banheiro, banho. Ali,
ainda que as pessoas em situação de rua se tornem invisíveis
para os transeuntes e o poder público, não podem largar seu
estado de alerta. A ameaça é onipresente.
Nos
extremos da ausência de pouso, reina a dor. Não ter para onde
voltar gera uma espécie de despersonalização, com a pessoa solta
no mundo, sem referência, sem um lugar para se ocultar, sentar,
estirar, guardar seus pertences. Como é viver em tal tensão? Um a
um, os músculos se contraem, os órgãos se desarmonizam, desandam
em disfunção e adoecem.
Eu,
portadora de asma, tendo a casa pintada, destacadas as diferenças,
senti-me sem um canto para me esconder durante três dias e duas
noites iniciais, que se prolongaram por semanas. Foi um sonho ruim,
sem descanso, sem privacidade, sem sossego. Nada fatal, mas
doloroso. Segunda-feira os pintores desmontaram a sala de estar e
de jantar. Não tinha onde ficar nem onde comer. Mudei-me para a
cozinha. Lá podia me sentar e esperar a comida. Meu quarto também
foi desmontado, com móveis cobertos no centro do cômodo, sendo
desligada a internet fixa.
Escarificaram
as partes fofas das paredes, passaram massa corrida e depois as
lixaram. Para um asmático, o pó é pior do que os vapores
emanados pelas tintas. É sufocamento por obstrução dos
brônquios, peso no peito, tosse e chiado. Tive de ser medicada.
Num certo dia, almocei e corri para o consultório, ficando o
mínimo de tempo em casa. Na quinta e sexta-feira, dormi num
colchão no chão da cozinha, usando a bombinha, porque o cheiro
estava lá. Amigos me ofereceram hospedagem, outros me sugeriram um
hotel, mas como? A gente vigiando, metade das coisas se sujam e se
quebram, às vezes até somem. O jardim se acaba. Jogaram tinta em
cima do meu pé de araçá e solvente sobre a grama. Pintar a casa
equivale a um incêndio.
A
agonia de não ter o nosso lugar, não poder cumprir o ritual que
nos faz gente, traz insegurança, uma quase moléstia. Quando fui
morar em Belo Horizonte, nos três anos de residência médica,
passei por situação semelhante, pois morei em república,
pensionato, casa de um tio, casa de uma prima, montei um
apartamento com minha irmã, enfim, um périplo de improvisações
que tiveram seus momentos de insegurança, por estar de malas
prontas, meio acampada, situação em que a temporalidade era o
dado mais marcante.
Moro
nesta casa há 19 anos, e me vi impedida do básico: respirar. No
sexto dia, pude voltar a uma relativa normalidade, mas com a
residência cheia de estranhos. O fato me desgastou de tal forma,
que me lembrei da coletividade, pensando nas pessoas que em caráter
permanente não têm onde morar. Não por questão de posse, mas de
sossego. O ódio contra os sem teto é tão grande que índios
Galdinos existem em qualquer lugar. Todos os dias moradores de rua
são assassinados. Depois da exclusão social, a faxina estética
pela expulsão, jatos de água, demolição de acampamentos,
levantamento de muros, esmagamento da cabeça por pedrada (como
morreu Galinheiro, que odiava esse apelido), e desse modo, adultos
e crianças vão perdendo suas vidas.
Não
ligo se acham que é demagogia, mas meu desconforto de algumas
semanas serviu para eu pensar na nossa falta de humanidade. A
sociedade é responsável pelas suas criaturas, todas elas, e sem
emprego, saúde, educação e moradia, não há dignidade, não há
cidadania. Oferecer oportunidade para todos, mesmo sabendo que
alguns se destacarão, e outros falharão, é um dever do Estado
que exige a contrapartida do cidadão. Só assim nos tornaremos
civilizados.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da
Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico,
ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Nada como o bom, velho e aconchegante lar. Direito que seria de todos, mas privilégio de poucos... Tenha um feliz Natal, Mara.
ResponderExcluirViajar é bom, mas o melhor lugar é a nossa casa.
ResponderExcluir