Carta a Iepê
* Por
Risomar Fasanaro
São Paulo, 13 de dezembro de
1968
Iepê, amigo meu distante.
A saudade é grande e a
esperança de lhe rever, cada vez menor. Estou lhe escrevendo para
dizer que 3 xícaras de farinha de trigo, 2 ovos, 1 xícara de açúcar
e 4 colheres de margarina, ou óleo Luz. Mas não estamos
desesperados, assim que misture tudo muito bem, bata bastante sobre a
mesa polvilhada de farinha, até que você sabe como são essas
substâncias, forme-se uma massa uniforme.
Coloque fermento e, por último
as coisas continuam do mesmo jeito. Quando a gente pensa que vai
melhorar, leve-a ao forno brando, e não abra o forno pois se entrar
ventilação, antes de a massa obter o crescimento necessário, o pão
poderá ficar perdido, a massa não conseguirá mais crescer. Você
terá de preparar outra.
Ah...imagine que houve uma
reunião, e muitas coisas foram discutidas, entre elas que um pouco
de uvas passas embebidas em licor, que sempre coloco sobre o pão,
mas o pessoal nem notou. Achou o gosto meio esquisito, mas nem
percebeu o que era. Acho que foi por causa do jogo do Corinthians. 1
xícara de leite, 6 bananas amassadas, 8 gemas.
Todos nós assistimos ao jogo
pela televisão, nem sabíamos direito o que estávamos comendo,
queríamos era que nosso time ganhasse. Acendi até uma vela, e acho
que os santos ajudaram.
Sabe, hoje foi um dos dias em
que mais senti saudade de você. Lembrei muito daquela bandeira
enorme do time, que você trouxe aqui em casa pra me mostrar, antes
de ir pro Pacaembu. Lembra-se? Ele estava quase ganhando o
campeonato, mas sofreu mais uma derrota. Dá raiva quando me lembro.
Você esperou tantos anos aquela vitória, e quando ela aconteceu
você estava tão longe...
Agora que estão as
armas e os barões assinalados
isso não tem nenhuma importância que
da Occidental praia lusitana,/por mares nunca dantes navegados,/
Passarão ainda além da Trapobana,/ E em perigos e guerras
esforçados/ Mais do que prometia a força humana/ Entre gente remota
edificarão/ Novo reino, que tanto sublimarão,/
Puxa...Mas este nó no peito,
esta garganta ferida, isso não tem jeito mesmo. Essa vontade de sair
à noite, conversar, ver as gaivotas na praia, aqueles lírios no
meio do mato, sem saber quem plantou...Tão brancos, tão lindos,
porque há sempre uma esperança quando a gente sabe que alguém
ainda planta flores no meio do mato, ou, quem sabe, nasceram
espontaneamente...
As flores não têm esse medo
tão grande que sinto todos os dias de 5 colheres de fubá, ½
pacote de queijo ralado, 2 xícaras de chocolate em pó, e esta
saudade que de tamanha se mistura com a de outras pessoas, como as
lembranças que ouvi de um caçador que ficou horas e horas dentro
de uma mata, meio deitado, meio escorado a um tronco de árvore,
vendo uma orquestra de tangarás que tocava e dançava.
Tão organizadinhos, me dizia
ele, que havia orquestra e dançadores e tudo, e que de tanto
dançarem, a casca do galho já não existia, e enquanto ele me
contava tudo aquilo eu sentia saudade por ele e por mim, e mais
ainda: saudade de você.
É como se um dia a gente
tivesse sido uma espécie de tangará que tivesse dançado muito, e
por isso morresse um pouco. Acho que as árvores não vivem muito
quando lhe tiram as cascas. Também os tangarás você não acha?
Quando meu Deus, vou poder
rever você? Talvez nunca. Porque mesmo que um dia volte, não
seremos as mesmas pessoas. Tantas somas de tantas tristezas, que mais
dariam que uma tristeza maior?
Eu sei que aí é muito frio.
Dou razão a você de não gostar, porém, mais fria, Amigo, é a
terra em que, mesmo havendo sol, a alma não se aquece. E quando se
aquece é por pouco tempo. É como um champagne que ferve, borbulha,
sob uma aparência gelada que é forçada a assumir.
Passamos o limite aonde
chega
O solo que para o Norte os
carros guia,
Onde jazem os povos a quem
nega
O filho de Clymene a cor do
dia
(Camões, Luís de- Os
Lusíadas- Canto V vs. 49 a 52)
Madrugadas e madrugadas que
escrevo a você. Cartas que não envio. Não envio nunca. Isso no
entanto me recheia o peito como um licor recheia um bombom. Não pra
que saiba de nada, mas como uma forma de aquietar essas águas dentro
de mim que não dormem nunca. Inútil. Na verdade só me faz sentir
mais e mais esta angústia que não sei até quando vai durar.
Às vezes me olho no espelho,
e sinto que em alguma das vezes em que saí, me trocaram por outra
que não conheço. Mas à noite, quando de novo me encontro, vejo que
é assim mesmo, e que só o espelho me diz a verdade em seu silêncio.
Uma noite dessas sonhei
(adivinhe com quem?) com você, é claro. O dia estava azul e você
vestia uma camisa vermelha de mangas curtas. Corria pra te abraçar,
mas me lembrava de que não podia. Atos e fatos nos separavam. O
sonho se dividia em atos. Isso é tão engraçado, não é? No quinto
você partia.
Ficava-nos também na terra
amada
O coração, que as mágoas
lá deixavão;
E já depois que todo se
escondeo,
Não vimos mais em fim que
mar e ceo.
(Camões, Luís de- Os
Lusíadas - Canto V
vs 21 a 24)
(Trecho do conto “Carta a
Iepê” do livro de contos “Os Samurais praticam Harakiri”-
ainda não publicado).
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e
escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra
vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto
por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José
Louzeiro..
Nenhum comentário:
Postar um comentário