Memórias
do Melo Merenda: o mau velhinho
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Muitos
anos depois, na sede da Polícia Federal do Amazonas, o “Velhinho”
haveria de recordar aquela tarde remota em que desceu pela última
vez a enlameada rua Varcy Herculano rumo ao cais, de mãos dadas com
o pai Jurandir e a mãe Osmarina. Sua Ipixuna, recém desmembrada do
município de Eirunepé, era então um povoadozinho com poucas casas,
que alagavam na subida do rio Juruá, e uma única igreja, a da
padroeira Nossa Senhora das Dores. Parecia muito com a aldeia
colombiana de Macondo.
Agora,
no natal de 2017, o “Mau Velhinho” lembra que há 60 anos se
benzeu ao passar diante da igreja. Foi assim que se despediu da
“Princesinha do Juruá”, sua terra natal. A família, que se
mudava de mala e cuia para Manaus, não suspeitava que aquele moleque
de dez anos e ainda de calça curta seria, um dia, governador do
Amazonas e se inspiraria em Sérgio Cabral, governador do Rio de
Janeiro.
Preso,
agora, no Centro de Detenção Provisória Masculino (CDPM), o
ex-governador José Melo, identificado como “Velhinho” na lista
de propina, passa o filme de sua vida. A chegada a Manaus, o ginásio,
o diploma do Curso de Datilografia da Escola Olivetti assinado por
Carmela Faraco. A contratação, em 1967, como datilógrafo pela
Universidade do Amazonas, onde entrou pela “janela”, sem
concurso. O salário de NCr$105,00, uma merreca para quem
datilografava 400 caracteres por minuto, com notável habilidade e
agilidade nos cinco dedos. Um deles, duro, o indicador.
Sua
memória refaz a carreira meteórica na universidade como recompensa
por serviços prestados ao governo militar: as denúncias de colegas
“subversivos” que atacavam solertemente a família em nome do
materialismo ateu e totalitário; sua nomeação para o cargo
comissionado de chefe da Assessoria Especial de Segurança e
Informação (AESI); os ofícios que assinou, alguns já publicados,
censurando livros e discursos de formatura; a fugaz passagem como
sub-reitor interino, o cargo de secretário executivo e de presidente
da Comissão de Bolsas de Estudos da Universidade.
O
velho e o bar
A
memória é traidora, mas agora, a presença no Centro de Detenção
do irmão Evandro Melo, seu cúmplice na corriola, lhe permite evocar
a origem do melomerendismo – uma vertente do modelo de governar
criado por ele quando secretário de Educação nos dois governos de
seu mentor Amazonino Mendes, tempo mais que suficiente para
enriquecer. Recorda reuniões no bar perto da SEDUC, depois do
expediente, onde dividiam “a merenda”, entre um uísque e outro,
e elogiavam, embevecidos, suas fontes inspiradoras, locais e
nacionais.
Preso,
o “Velhinho” relembra agora sua vida na administração pública,
que mudou com a nota preta da Fundação de Assistência ao Estudante
(FAE). Foram R$ 6 milhões para comprar duas mil toneladas de merenda
escolar, o equivalente a 215 caminhões entupidos de alimento. Lembra
que foi aí que tirou a barriga da miséria e enriqueceu, mas passou
um perrengue danado, quando o deputado Luís Fernando Nicolau, um
invejoso, o acusou publicamente, em agosto de 1995, de ser autor do
desfalque junto com Amazonino, em denúncia acolhida pelo Tribunal de
Contas da União.
Tudo
isso ele recapitula agora que passa outro sufoco com a prisão
temporária. Coça a careca reluzente e tranquiliza seu irmão,
relembrando que a delação de Nicolau não deu em nada, os auditores
examinaram notas de empenho e notas fiscais, comprovando que os
alimentos da merenda foram comprados e até pagos antecipadamente.
Então, por que não chegaram às escolas? O Tribunal aceitou o
argumento de seus advogados: eram produtos perecíveis, que
apodreceram, os ovos goraram. Afinal, felizmente vigorou o estado de
direito – aquele em que corrupto não é punido.
-
Tem Gilmar Mendes em toda biboca – pensa em voz alta o Velhinho,
que rememora como saiu fortalecido para outros voos, depois do
episódio que lhe deixou de herança apenas o incômodo apelido de Zé
Melo Merenda. Recapitulou outros caminhos, agora, na área da saúde.
O Velhinho sonhava com leões, mais precisamente como driblar o leão
do Imposto de Renda
Zé
Melo Bisturi
O
preso temporário José Melo Merenda, depois de fazer o exame de
corpo de delito, continua a efetuar o balanço de sua vida. Relembra
o nome de Zé Melo Bisturi acrescentado ao seu currículo. Foi quando
como vice-governador assumiu o poder, em abril de 2014, após o
afastamento do titular Omar Aziz que saiu para disputar a eleição
ao Senado, e logo depois quando tomou posse num segundo mandato, em
janeiro de 2015.
Deitado
no catre, na cela, Zé Melo Bisturi relembra o know
how adquirido
por Zé Melo Merenda, secretário de Educação, que lhe serviria
depois para desviar, como governador, os recursos bastante superiores
do Fundo Estadual da Saúde. É muita grana, né não, Edilene? Se
houve impunidade no caso da merenda, certamente a situação se
repetiria na área da saúde. Não foi difícil. Bastou decretar o
estado de emergência e nomear um gabinete de crise encarregado dos
desvios e dos pagamentos periódicos de propina feitos aos membros da
organização criminosa.
Empresas
da ex-primeira dama Edilene Gomes de Oliveira, admiradora de Adriana
Ancelmo, também apresentam “movimentações financeiras atípicas”.
O filme avança. Zé Melo Bisturi vê como o xerife prende os
bandidos, inclusive ele, que na véspera do natal revive sua prisão
temporária, ocorrida nesta quinta-feira (21), quando foram
aprendidos quase 400 mil reais em espécie nas casas dos membros da
quadrilha, uma parte na residência do próprio “Mau Velhinho”.
Não
chega a ser bem uma prisão. Tecnicamente, segundo a Polícia
Federal, sua condição não é de preso, mas de “acautelado
reservadamente”, não é mesmo Edilene?
De
qualquer forma, a Controladoria Geral da União (CGU) indica um
abismo entre o patrimônio do Zé Melo Bisturi e seu salário mensal,
mas o mesmo se constata com outros governadores e parlamentares, que
continuam soltos. Felizmente o Mau Velhinho é escolado. Fez
graduação com Amazonino, mestrado com Eduardo Braga e doutorado com
Omar Aziz. O pós-doutorado foi com Paulo Maluf, num programa de
educação à distância, o que lhe garante que só será preso mesmo
aos 90 anos, se lá chegar, sendo logo solto por um Gilmar Mendes
qualquer, deixando-o pronto para novas aventuras.
Na
prisão temporária – saio já daqui, não é mesmo Edilene? – o
Mau Velhinho decifra os mistérios da vida, consciente de que as
estirpes cujo roubo deixa milhares de crianças famintas e milhares
de doentes sem atendimento, terão sempre uma segunda oportunidade
sobre a terra. No Supremo Tribunal Divino (STD), porém, serão
julgadas por crimes que bradam aos céus e clamam a Deus vingança.
Não adianta rezar. Lá, não tem Gilmar, nem Romero Jucá consegue
“estancar a sangria”, nem Michel Temer pode conceder indulto
natalino.
P.S.
- Nos últimos vinte anos, foram muitas crônicas sobre o
melomerendismo. Selecionamos 17 delas, que abordam o tema, ou fazem
menção a ele:
CRONICAS
SOBRE O MELOMERENDISMO
1,
Quem comeu a merenda das crianças? (29/08/1995)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/493-quem-comeu-a-merenda-das-criancas
2.
Cadê a merenda do Cley? (10/10/1995)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/489-cade-a-merenda-do-cley
3.
Dona Waldenora, Zé Melo e outros bichos (29/01/1996)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/434-dona-waldenora-ze-melo-merenda-e-outros-bichos
4.
Os ovos do melo: o omelete (17/12/1996)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/372-os-ovos-do-melo-o-omelete
5.
Na Ceia de Natal, políticos amazonenses juntam panelas (26/12/1996)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/371-na-ceia-de-natal-politicos-amazonenses-juntam-panelas
6.
Pizza, tacacá ou omelete do Belão (02/03/2008)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/96-pizza-tacaca-ou-omelete-do-belao-
7.
O testamento do Judas (23/03/2008)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/93-o-testamento-do-judas-2008
8..Tribulins
e Tribumelo: desatando o ponto do jogo (11/01/2009)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/37-mamae-eu-quero-tribumelo
9.
O dia em que a Geny Munduruku me salvou (07/02/2010)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/37-mamae-eu-quero-tribumelo
10.
Zé Melo no Espoca-Velha (25/07/2010)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/873-ze-melo-no-espocavelha
11.
Vai, pororoca, para o nordeste (04/01/2015)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1122-vai-pororoca-para-o-nordeste-vai
12.
O melomerendismo e o caramujo africano (08/05/2016)
- http://taquiprati.com.br/cronica/1275-o-melomerendismo-e-o-caramujo-africano
13.
A lei Linguacu e o melomerendeira (08/10/2016)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1308-a-lei-linguacu-e-o-melo-merendeira
14.
Diz-me com quem andas, Marcelo Ramos (28/10/2016)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1310-dizme-com-quem-andas-marcelo-ramos
15.
O Lobo e os ovos de Hegel (01/01/2017)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1319-o-lobo-e-os-ovos-de-hegel
16.
O massacre dos presos e o melomerendismo (08/01/2017)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1320-o-massacre-dos-presos-e-o-melomerendismo
17.
O Testamento de Judas e o Serra Velho (16/04/2017)
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/1334-o-testamento-de-judas-e-o-serra-velho
*
Jornalista
e historiador.
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