quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Conversa sobre o Caminho de Compostela


* Por Mara Narciso

Num lugar escuro, com música acelerada, o pensamento a acompanha, a conversa é gritada e o tempo passa depressa. A antítese disso é acompanhar a caminhada do casal Bento e Tudinha, na verdade, Alberto Sena Batista e Sílvia Batista no percurso de 800 km em 25 dias, saindo de Saint-Jean-de-Pied-de-Port na França até Santiago de Compostela, na Espanha. Na primeira viagem, noutra ocasião, foram 17 dias, saindo de Burgos, na Espanha e percorrendo 500 km. É natural ler devagar, pensando em cada passo. Para gente urbana, que toda hora quer lavar as mãos, usar o banheiro, comer e escovar os dentes, andar meia hora e descansar, percorrer o famoso roteiro de dimensões gigantescas causa admiração.

Católico devoto, Alberto me enviou e-mail dizendo que eu tinha de ter fé em alguma coisa, quando soube ser eu desprovida dela. Então, sei que ele crê, e em busca de transcendência e enriquecimento espiritual fez o Caminho de Santiago de Compostela duas vezes e pretende fazer o percurso outra vez. As questiúnculas de conforto não entram na conta das 192 páginas do relato, que finaliza em fotos. As questões humanas são a segurança quanto à temperatura corporal, a água, o alimento, o banho e o repouso noturno. Jornalista esperto, não disse, mas suponho que tenha feito um diário, ou pelo menos anotações.

Ainda que o caminho receba peregrinos do mundo todo há mais de 1500 anos, atraindo um movimento econômico nada desprezível, não são descritas aglomerações, exceto ao final do dia, na chegada às hospedagens. Atribuindo o fato à providência divina, Bento e Tudinha não dormiram ao relento. Uma vez num colchão ruim, que, pelas normas não poderia ser colocado no chão e duas vezes em hotéis novos, com direito a cama confortável, visão de estrelas e sutis referências ao amor.

Sendo primavera, o caminho é coberto por flores, mas, como chove, é preciso estar atento à vestimenta adequada, para não ter hipotermia, caso de Bento, ou dor no tornozelo, caso de Tudinha. Bolhas nos pés são ocorrências previstas. Tecnologia descartada, antes de começar, a pessoa se despe das suas posses, poses e seus consequentes preconceitos, voltando para si mesmo, enquanto penetra na natureza, seus campos e florestas.

O roteiro é marcado por setas amarelas, e ainda que a quarentena da caminhada possa sugerir monotonia para uma cética como eu, a escrita habilidosa de Alberto Sena, que em alguns pontos mescla as duas viagens, mantém o leitor curioso. Pontua o caminho com o nome dos povoados, fala das suas características, dos personagens generosos e ruins (ataque de um cão, negação de um pedaço de pão), fazendo da narrativa em capítulos um rico enredo.

Renunciar a um objeto precioso numa doação, não é desapego. O real significado de abnegação aflora nessa viagem, quando todos os pertences estão numa mochila com 10% do peso de quem a carrega. E na mão, um cajado, para dar apoio, suporte e servir de defesa. Ele pode ser comprado ou confeccionado pelas próprias mãos, como fez Bento, que, passo a passo foi humanizando seu companheiro, tornando-o um filósofo.

O peregrino pode ir de carro, ou andar parte do percurso a pé com apoio de vans, ou ir de bicicleta ou a cavalo ou a pé. A paisagem muda, e os fatos cotidianos revigoram o interesse pelo relato de cada dia. Porque estou aqui? Para a confirmação da fé, encontro com o divino, o transcendental, o mágico; para o autoconhecimento através da imersão nos próprios pensamentos (mesmo acompanhado, a caminhada é solitária); para a consciência corporal cuja fadiga e insignificância são transmutadas pela penitência em algo poderoso e forte.

Nos Pirineus da Alma – 40 dias no Caminho de Santiago de Compostela” é o 1º livro do premiado jornalista Alberto Sena. Pelo tema, um livro místico e poético. As convicções do escritor nos deixam lições durante todo o trajeto. A felicidade está no durante e não na chegada à catedral de Santiago, o apóstolo que andou por ali, divulgando os primórdios do Cristianismo. A obra fala sobre fé de forma natural, sem intenção de catequização e de superação, ensinamentos para a vida. Na caminhada, se podem jogar bons sentimentos ao vento, enquanto se vive a transformação individual, mas, quando a mudança é compartilhada, se torna universal.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”




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