domingo, 31 de dezembro de 2017

Um susto diante de si mesmo


* Por Anna Lee


Era final de março, começo de abril, e chovia muito quando Gilberto desembarcou no cais, depois de o Jacuípe da Companhia Pernambucana ter lutado desesperadamente com as ondas bravas do Lamarão. Teria ficado perdido no meio do temporal se um carregador de malas não o tivesse praticamente empurrado por uma porta, que estava entreaberta:
- O senhor fica aqui até a chuva abrandar. Mais tarde, venho buscá-lo.

Gilberto só teve tempo de olhar para a tabuleta que informava: Hotel de França. E entrou.

A sala principal estava vazia. De um outro cômodo vinha uma voz de mulher num sotaque francês carregado. Ela falava alto e sem parar. Mas não o suficiente para interferir no transe em que o rapaz caíra ao se deparar com os enormes espelhos que desciam ao longo das paredes até o chão e cobriam quase toda a recepção. Espelhos que Gilberto só tinha conhecimento pelas descrições de romances.

Em Sergipe, nunca vira nada igual. Nem se enfileirasse todos os espelhos que havia em Aracaju, no litoral e no sertão, e também nas cidades velhas, jamais conseguiria reproduzir o que estava vendo. Na Bahia, onde estivera durante dois anos, tampouco encontrara coisa igual. Se bem que lá só morara em repúblicas. No máximo, frequentara casas de professores, jamais lugares de luxo.

A dona do hotel apareceu e disse:
- Bom dia, senhorrrr!, escancarando a porta por onde Gilberto entrara e uma outra também.

Um clarão invadiu a sala. A luz derramou-se nos espelhos de modo que ele pôde se ver não só de frente como de lado, multiplicado e ao mesmo tempo dividido em formas e pedaços mil. O que antes era deslumbramento agora era um espetáculo hipnotizador. Ele não respondeu ao cumprimento. A mulher, num gesto de compreensão, retirou-se.

Gilberto não tirava os olhos de si mesmo. Pela primeira vez, se via de corpo inteiro. Até então, só tinha se olhado em espelho pequeno, de parede, ou pequeníssimo, de bolso, que reproduzia apenas o rosto, quando muito, gravata e pescoço. Jamais assim... todo, paletó, calças, sapatos. Teve um choque.

Naquele exato momento tomou conhecimento da sua fealdade. Uma fealdade que o fez recuar. Era “aquilo”?! A cabeça, grossa e pesada, enterrava-se nos ombros, formando com o torso empinado um ângulo agudo. A queixada aproava num arremesso antipático. Surgia ali a inimizade pelo próprio físico, que carregou durante o resto da vida. Desde então, era ver-se diante de um espelho grande, sobretudo de perfil, para experimentar uma sensação brusca, quase um susto diante de si mesmo.

  • Trecho de O Sorriso da Sociedade.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




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