Duelo
na Escola de Magistratura do Rio: Las Casas versus Sepúlveda
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Se
William Bonner anunciar no Jornal Nacional – não, espera lá, o JN
não vale porque ninguém acredita nele – mas se o Ricardo Boechat
noticiar no Jornal da Band que uma nave espacial pousou no planeta
Marte e descobriu a existência de seres extraterrestres, como é que
nós, humanos, iremos classificá-los e tratá-los? ET é gente como
a gente?
Guardada
a distância histórica, foi mais ou menos o que aconteceu em 1492,
quando Colombo aportou na atual Bahamas e encontrou os ameríndios
nus, vivendo integrados à natureza, emitindo sons incompreensíveis
aos europeus. O que era “aquilo”? Eram seres humanos? Eram
bichos? Tinham alma? Uma bula do papa Paulo III, de 1537, respondeu
afirmativamente, propondo a evangelização e conversão dos índios.
Esse
exemplo foi usado na minha fala nessa sexta (01/12) no auditório da
Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) na mesa mediada pelo
procurador de Justiça Leonardo Chaves e compartilhada com Arassari,
líder Pataxó. O evento “Etnia, Raça e Gênero”,
organizado pelo Fórum Permanente de Direitos Humanos, foi aberto por
seu presidente, desembargados Caetano Costa.
Arassari
Pataxó centrou sua fala nos direitos dos índios hoje, no Brasil, me
permitindo assim focar no célebre debate histórico entre dois
juristas, realizado em Valladolid, em 1550-1551, diante do Conselho
de Índias, quando discutiram se os espanhóis tinham o direito de
invadir a terra dos índios e de escravizá-los. Essa polêmica deu
origem à legislação espanhola colonial e lançou as bases do
direito internacional moderno. Vale a pena lembrar os seus
protagonistas e conferir a atualidade do que disseram.
O
debate
De
um lado, o jurista Juan Ginés de Sepúlveda, de 61 anos, a serviço
dos “encomenderos” – o agronegócio da época - defendia a
doutrina aristotélica da escravidão natural. Era – digamos assim
– um precursor do Gilmar Mendes. Filho de um juiz, ele se
formou em direito na Universidade de Alcalá e se doutorou na
Universidade de Bolonha. Seu apelido era “o Castrado” porque num
torneio de equitação na Sicília, ao se exibir para uma jovem
condessa, fez manobra imprudente e o cavalo lhe decepou o depósito
do sémen.
De
outro lado, Bartolomeu De Las Casas, então com 76 anos, filho de um
pequeno comerciante da Andaluzia, que acompanhou Cristóvão Colombo
na sua segunda viagem à América. Diplomado em Estudos Jurídicos
pela Universidade de Salamanca, Las Casas contra argumentava dizendo
que todos os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e,
portanto, a escravidão devia ser rejeitada e as terras ocupadas
pelos índios deviam ser respeitadas.
Os
dois eram juristas, os dois eram sacerdotes, os dois eram
dominicanos, ou seja, da mesma ordem religiosa e os dois se tornaram
bispos no final da vida. Sepúlveda, que era capelão e cronista do
Imperador Carlos I, morreu no ano em que foi nomeado bispo de
Pozoblanco, na Espanha, terra onde nasceu. Las Casas, denominado
Protetor e Defensor Permanente dos Índios, foi sagrado bispo de
Chiapas, no México, de onde foi expulso três anos depois pelos
colonos, descontentes com a defesa que ele fazia dos índios.
Na
polêmica em Valladolid, que durou dois anos, Sepúlveda defendeu o
direito dos cristãos subjugarem militarmente os ameríndios, “povos
inferiores, bárbaros, selvagens, antropófagos, comedores de carne
humana, contra quem era legítimo usar a força” para impor os
valores religiosos e morais, a língua e a cultura do conquistador.
Além disso, segundo ele, os índios viviam vida sexual desregrada,
praticavam sodomia, se embriagavam, eram preguiçosos, desobedientes,
brutais, traidores, cruéis, vingativos, ladrões, sem fé, nem lei.
Impiedosos, abandonavam seus doentes à própria sorte. Tudo isso
justificava a declaração de “guerra justa” e a escravização.
-
Jamais Deus criaria uma raça tão cheia de vícios e bestialidades –
concluiu Sepúlveda.
Direito
à insurgência
Las
Casas rebateu, argumentando que Sepúlveda não sabia o que estava
dizendo, nunca colocou os pés na América, não conhecia as culturas
que condenava e incorporava em seu discurso os preconceitos raivosos
dos encomenderos. Defendeu que a escravidão dos índios devia ser
rejeitada porque eles, como todos os homens, foram criados sim à
imagem e semelhança de Deus. Portanto, o rei da Espanha e os colonos
não podiam se instituir como proprietários das terras dos índios,
cujos direitos deviam ser respeitados. A Coroa Espanhola podia até
cobrar deles tributos, mas em troca devia lhes dar proteção.
No
esboço precursor de uma “etnologia comparada”, Las Casas
argumenta que alguns costumes e manifestações culturais e
religiosas dos índios deviam ser entendidas no contexto de suas
culturas e, se fosse o caso, modificadas lentamente com
convencimento, nunca pela força. Defendeu o direito à insurgência,
justificando que os índios atacados tinham o direito de se rebelar.
Las
Casas, que viveu com os índios quase 50 anos, cruzou muitas vezes o
Atlântico para tentar convencer o rei a decretar e aplicar leis
humanitárias. Baseado nas Ciências Jurídicas e na Teologia,
defendeu quatro princípios fundamentais do direito de todos e de
cada um dos povos:
1)
O Direito universal de possuir e dispor das coisas.
2)
O Direito de jurisdição ou de governo natural e inviolável, o que
garantia aos índios preservar suas autoridades legítimas.
3)
O direito natural dos índios à liberdade.
4)
O direito de ser servido pelo poder civil e pela autoridade
religiosa.
Em
1552, as obras de Las Casas foram censuradas e sua leitura foi
proibida. Numa delas, "Confessionário", exigia que antes
de iniciar a confissão, o pecador devia libertar seus escravos
índios, porque do contrário não mereciam o perdão. Deviam também
restituir os bens alheios roubados dos índios e indevidamente
retidos, porque o roubo não conhece prescrição, não tem marco
temporal. Uma vez cometidos tais crimes – ele escreve – eles
devem ser reparados em qualquer situação por exigência ética.
Os
encomenderos espanhóis, revoltados, expulsaram Las Casas do México.
Debate
atualizado
Existem
livros, peça de teatro e filme sobre o debate entre os dois juristas
e teólogos. O livro escrito pelo francês Jean-Claude Carrière é
roteiro cinematográfico adaptado também para o teatro. A peça “A
Controvérsia” foi encenada em 2.000, ano do 5º Centenário do
Brasil, no Teatro do Hotel Glória, no Rio, com Mateus Nachtergaele
(Las Casas), Otávio Augusto (Sepúlveda) e Paulo José
protagonizando o emissário do Papa mediador do debate. O elenco
contava ainda com três atores índios, falando em sua própria
língua, que ninguém entendia, o que tinha grande força simbólica.
O cenário era formado por mesas e cadeiras com um pano preto no
fundo do palco.
Já
o filme francês A
Controvérsia de Valladolid, de
1992, celebrando o 5º. Centenário da América, traz Jean-Louis
Trintignat no papel de Sepúlveda e Jean-Pierre Marielle como Las
Casas. Não se trata de um relato comprometido com os fatos
históricos, mas construção ficcional sobre a polêmica.
De
qualquer forma, os estudantes de direito muito ganhariam se tomassem
conhecimento dessa polêmica que mantém extraordinária atualidade,
bastando ver o que acaba de acontecer com duas mulheres indígenas em
Santa Catarina e em Rondônia, com um silêncio - cúmplice? -
da mídia.
Há
mais de uma semana, a guarani Ivete de Souza, 59, teve sua mão
esquerda decepada a golpes de facão por dois jovens, durante um
ataque à aldeia Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, onde vivem 300
guaranis. Trata-se de uma represália contra a filha de Ivete, a
cacica Kerexú Yxapyry, que também é professora da escola indígena
e organiza a resistência à invasão de suas terras, ameaçadas por
grileiros e pelas obras do governo federal na rodovia BR 101 que
corta a área.
Na
madrugada de quinta-feira (30), a professora Elisângela Suruí, que
obteve o prêmio “Educadora do Ano”, foi atacada a tiros por
bandidos em Cacoal (RO). Ela estava com o marido, Naraymi, cacique da
Aldeia Paiter Suruí. O casal, que conseguiu escapar, acredita que se
trata de retaliação dos madeireiros expulsos da terra indígena
Sete de Setembro porque estavam derrubando castanheiras. A
professora, de 38 anos, dá aula na escola bilíngue e alfabetiza
crianças na língua Suruí, dentro do projeto “Mamug Koe Ixo Tig”
que significa “A fala e a escrita da criança”.
Sepúlveda,
mesmo castrado, continua vivo. Vivíssimo. Felizmente Las Casas
também. Que a EMERJ possa iluminar os estudiosos do direito com sede
de justiça e reafirmar o admirável humanismo protagonizado por Las
Casas
*
Jornalista e historiador.
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