O
direito de morrer em vida
* Por Anna Lee
- Na Glória .
Com a decadência
profissional , os amigos
se afastaram, a mulher e as filhas o
abandonaram. Quanto
mais distante
estivesse, melhor para
todos . Foi nessa fase
que ele
se aproximou de Verônica . Os encontros casuais
transformaram-se se não num
relacionamento sólido – nada era sólido na vida
dele – pelo menos
numa cumplicidade . Ele
confiava em Verônica . Verônica admirava a obstinação
dele. Nem por
isso ele
deixou de ser solitário .
Ele era
solitário . Era
e fazia questão de ser solitário .
Há duas semanas
ela não
o via , estranhou a sua
magreza , sua
pele escurecida pela
doença , quase
colada aos ossos , os olhos sim , brilhantes ainda ,
talvez pela
febre , talvez
pela angústia
de vê-la mais uma vez
que – ambos
sabiam – seria a última .
Ele não
conseguiu olhá-la com ternura . Fez um gesto em direção à mesinha-de-cabeceira.
Verônica entendeu. Abriu a pequenina gaveta
e nela encontrou a carteira que comprara para ele , quando se
conheceram.
Adivinhou que
haveria ali alguma coisa
importante para
os dois . Não era dinheiro , a carteira não tinha nota
alguma. Além do pequenino
caderno de endereços ,
havia uma chave no fundo
de uma das divisões de couro .
Ela também
conhecia aquela chave . Pegou-a, mostrou-a, ele
fez um gesto
com a cabeça ,
aprovando.
Ele apertou a mão
de Verônica com
a força possível ,
olhou-a mais uma vez .
Ela entendeu. Não
fixou aquele rosto
deformado pela doença ,
era uma forma
de respeitá-lo, de dizer que
o amava e o amaria sempre .
***
O trecho acima que abre o
meu livro
O Beijo
da Morte me
faz pensar na morte . Mas também pode
ser o contrário :
lembrei-me desse trecho justamente
porque estava pensando na morte .
Para ser mais precisa ,
estava pensando no direito de morrer em vida que a literatura dá. Li isso
em
Blanchot. E concordei.
Porque morrer
qualquer idiota
morre. Aliás , estamos na vida para isso mesmo . Não importa quantas possibilidades nos sejam apresentadas, o fim
será o mesmo para
todos : a morte ,
que tem o seu
momento próprio ,
que não
aceita adiamento ou
antecipação . A morte
não se submete e é assim .
Ponto .
Fosse diferente ,
o suicídio resolveria tudo .
Mas não
resolve. Escolher a morte
não significa alcançar
o momento da morte ,
mas deixar
uma vida em
suspensão . E também não é o caso de clamar pela imortalidade ,
que de tudo
é a pior opção .
Trata-se de estar entre
a vida e a morte ,
vítima de um
acidente que
não foi capaz
de matar , mas
também não
permite viver .
É por
isso que
escrevo, escrevo, escrevo e, a cada morte que atravessa meus escritos , sem desejar nenhum futuro e
nenhum passado ,
peço à vida que
me beije mais
uma vez .
*Jornalista,
mestranda em
Literatura Brasileira , autora, com Carlos Heitor Cony, de
"O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre
outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas
Quem/Ed.Globo e Manchete.
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