Aranha e abelha
* Por
José Guilherme Merquior
PARA UMA CRÍTICA DA IDEOLOGIA PÓS -MODERNA
A classificação de
pós-moderno já foi aplicada a pelo menos três coisas: (a) um estilo ou estado
de espírito oriundo da exaustão ou insatisfação com o modernismo na arte e na
literatura; (b) uma tendência na filosofia francesa ou, mais especificamente,
na teoria pós-estruturalista; (c) a mais recente época cultural do Ocidente.
A afirmativa (c)
parece um pressuposto de (b). Contudo, quanto mais se caminha do sentido (a)
para os sentidos (b) e (c), mais problemas conceituais surgem: inúmeras
questões parecem se insinuar tanto na descrição quanto na avaliação da arte e do
pensamento pós-modernos. Tentemos discriminar algumas delas.
O conceito de
tendência pós-moderna na história da arte - onde esta classificação foi
inicialmente empregada, basicamente ligada à arquitetura - implica obviamente a
necessidade de haver diferenças fundamentais entre diversos movimentos e obras
de arte contemporâneos e as intenções e realizações da vanguarda modernista na
primeira parte deste século. Entretanto, a arte pós-moderna pode ser tudo,
menos uniforme. Chistopher Butler nela viu corretamente uma dialética entre a
superorganização e a desordem deliberada: na literatura, isto corresponderia
aos rebentos do Finnegans Wake, em oposição à descendência dos Cantares de
Pound.
Percebo sua oposição,
porém não sua mediação dialética. Na realidade, parecem existir dois programas
principais na estética pós-moderna.. Por um lado, há uma ênfase na estrutura.
Octavio Paz, de sua parte, vê a poética estruturalista abandonando um dos dois
grandes princípios que animam a arte ocidental desde o romantismo, sendo o
primeiro destes a linguagem da antologia (dirigida contra a análise, o espírito
da ciência e veio principal do pensamento moderno) e o segundo o constante
exercício da ironia, uma incansável autodepreciação ditada pela inquietude da
consciência transcendental - a disposição fáustica do homem moderno. De acordo
com Paz, a arte estruturalista conserva a analogia mas abandona a ironia:
oferece infindáveis transformações de forma e significado desvinculados de um
ponto de vista transcendental ou a autoridade do eu. A literatura da
"morte do autor "é seu exemplo melhor conhecido, começando no nouveau
roman.
Por outro lado, há
muitas correntes pós-modernas que enfatizam o aleatório antes que a estrutura,
como se dá na música de Cage, nos textos de Burroughs, no living theater, etc.
Aqui a posição de relevância seria entre a busca modernista de uma forma nova e
a ânsia pós-moderna pela antiforma. Vai para quinze anos, Ihab Hassan escreveu
uma obra-prima de indefinição conceitual sobre a "forma em desaparição da
"literatura de fragmentação", misturando Broch e Céline, Iris Murdoch
e Günther Grass, Edward Albee e Jerzy Grotowski, e os então novos autores
norte-americanos do absurdo - Pynchon, Heller, Brautigan e Barthelme - sem se
esquecer de invocar o sagrado nome de Duchamp.
Podemos resumir a
discussão geral, dizendo que a estética pós-moderna permite duas
autodefinições, uma estruturalista e outra neodadaísta.
Contudo, será a arte
pós-moderna realmente tão diferente da arte moderna? Alguns críticos sustentam
que ela se afasta bastante da mistura modernista de alta seriedade com ideais
de coerência formal. Contudo, mestres modernos como Gide e Picasso, Joyce, Klee
ou Musil dessacralizaram e desfetichizaram a forma artística muito antes.
Grande parte da literatura moderna substitui por uma aparência grotesca e um
desejo de paródia o pathos e a tragicidade das obras românticas e vitorianas:
basta pensar em Svevo, Bulgakov ou Gombrowicz, se comparados com Tolstói, Hardy
ou Fontane. Como observou um dos mais argutos analistas do ethos modernistas,
Ortega Gasset (1925), o primado do lúdico constitui uma linha divisória entre a
cultura estética do século XIX (romântica e decadente) e a moderna.
Levando-se em conta
outro aspecto capital: o pós-moderno, ao menos na sua disposição neodadaísta,
idolatra um horizonte "além da imagem". Ele separa o estético do
artístico. Eventos, não obras, eis o que importa. A arte conceitual não
necessita de obra artística: "o catálogo é a exposição". Como foi mencionado
anteriormente, o fantasma de Duchamp persegue o pós-moderno. Mas era Duchamp
afinal alguém tão marginal em meio à vanguarda? De qualquer forma, a idéia da
arte mental não era monopólio dadaísta. Worringer - um teórico expressionista,
se é que já houve algum - reivindicava-se como parte essencial das artes
visuais modernas como um todo. Mais uma vez, a fronteira entre o moderno e o
pós-moderno torna-se imprecisa.
Há, portanto, bastante
continuidade entre as atitudes modernas e pós-modernas com relação à arte. E
com relação a suas respectivas visões de mundo? A mente modernista - escreveu
Cyrril Connolly (The Modern Movement, 1965) - era uma mistura de iluminismo e
traços românticos: combinava o ceticismo do primeiro com a intensidade
apaixonada e o profundo mal-estar face ao presente da alma romântica. Tanto a
crítica de arte quanto a crítica literária há muito reconheceram que a visão
modernista exacerbou o ânimo contestador, o impulso da contracultura da
tradição romântica: viram o modernismo como uma arte de protesto (Herbert Read)
inclinada a uma ruptura completa e primitivista com a cultura social (Lionel
Trilling). O modernismo foi, neste sentido, um romantismo à outrance. Enquanto
as primeiras ondas estilísticas desde o romantismo eram mais brandas em sua
negação da cultura moderna, o modernismo declarou guerra à modernidade.
Comprometeu as artes com a função do romance de acordo com Lukács: a busca de
uma indagação de valores numa sociedade (pretensamente) sem valores.
Foi a intransigência
deste rejeicionismo cultural que acicatou na vanguarda uma visão purista das
artes. Loos despojou a arquitetura de ornamentos, Schoenberg purgou a música do
cromatismo wagneriano, Kandisnky libertou a pintura de valores esculturais,
Brancusi procurou uma escultura livre do pictorialismo de Rodin e o movimento
da poésie pure dramatizou a divergência entre verso e afirmação. Subjacente a
todo este purismo, sempre um puritanismo: o fervor da sua indignação moral
contra a cultura burguesa. Mas o importante é que, através de dois séculos, a
essência da produção estética avançada tem sido a arte "adversária".
Isto qualifica de forma decisiva a famosa antítese de Eliot entre moderno e
romântico baseada na impessoalidade versus subjetivismo. Tanto Edumund Wilson,
em O castelo de Axel, quanto Frank Kermode, em A imagem romântica, revelaram
afinidades essenciais entre a estética e a poética romântica e moderna.
Ora, no caso do alto
modernismo, este forte fator de Kulturkritik tornou-se especificado num código
de valores freqüentemente em discordância com o progresso social. À diferença
de românticos; de Shelley a Heine e Hugo, ou pós-românticos como Ibsen e Zola,
a maioria dos modernistas eram libertários na arte mas acabados reacionários
socialmente. É difícil discordar de John Gross (em seu livro sobre Joyce): o
temperamento democrático de Ulisses não era, de forma alguma, característico da
ficção do alto modernismo.
Mas excetuando-se a
política, o componente iliberal também era evidente em outros aspectos mais
gerais da visão de mundo modernista. Por exemplo, o modernismo em geral como um
veículo para verdades mais altas - algo muito além da pura defesa da
importância cognitiva da arte, negada pelo cientismo. Intelectuais vitorianos
progressistas, como por exemplo John Mill, detectaram o imperialismo
epistemológico da teoria estética alemã, a doutrina da Arte como Visão. Mas
sábios humanistas como Matthew Arnold advertiram que a poesia estava prestes a
substituir a religião como fonte da crença e da moralidade. Já não bastava
aprender poesia; era necessário aprender com a poesia. Pouco admira que, de
Mallarmé a Yeats, como de Hermann Hesse a Ernesto Sábato, a literatura de elite
tenha-se tornado uma forja gnóstica, produzindo elevadas verdades arcanas para
a cega humanidade. Os literati sacerdotais proferiram profundas verdades bem
acima dos credos sociais. A grafocracia - o poder da elite literária -
tornou-se a fantasia difusa dos letrados humanísticos, e a seita vanguardista
era a mais perfeita instituição grafocrática. O surrealismo, que parecia ser
inicialmente uma revolução contra todos os esteticismos, foi na realidade a
gnose mais literária: prometeu pôr fim ao divórcio entre a arte e a vida ao
sujeitar compulsoriamente a totalidade da vida a valores radicalmente poéticos.
Significativamente, sempre que escritores condutores da vanguarda aceitaram
eventualmente crenças sociais, i.e., extraliterárias, sua forma modernista
misturou-se a técnicas menos abruptas: assim se deu com Eliot convertido a
cristão, ou Brecht tornado comunista.
Além de freqüentemente
antidemocráticos e inclinados à grafocracia, os modernos evidenciaram o que se
pode avaliar como um iliberalismo estrutural na sua própria práxis artística.
Pois o modernismo em geral significava obscuridade, arte e literatura
"difíceis". Freqüentemente o estilo moderno se revelava a um só tempo
altamente impessoal e irremediavelmente subjetivista, uma vez que o significado
de tantas obras modernas continuava fora do alcance da maioria dos leitores e
espectadores. Isto lançava o artista moderno, de bom ou mau grado, numa posição
fortemente autoritária: a arte moderna era experimentada como uma tirania da
imaginação criativa sobre o público, mesmo o cultivado. Cada vez mais, os
humanistas estetas mais avançados, insatisfeitos como estavam com o curso da
civilização, também se mostraram indispostos contra a mente do homem comum.
Será que o
pós-moderno, em geral, se desviou de tal padrão? Terá evitado a guerra
modernista contra a modernidade? Terá escapado dos impulsos iliberais da
vanguarda? Na literatura, a situação é de certo modo ambígua. Para se levar em
conta o problema da obscuridade intencional, seria possível afirmar que o
paradigma de Borges, tão apreciado pela literatura mais recente, é muito menos
obscuro do que o paradigma de Kafka; mas que dizer da compacta descendência do
outro modelo de prosa pós-moderna, Beckett? Igualmente, a poesia, de Auden a
Enzensberger é, por vezes, quase didaticamente clara; mas que dizer de Paul
Celan ou René Char?
A verdade é que as
virtudes pós-modernas freqüentemente acentuam vícios modernistas. Considere-se
a aceleração pós-moderna de experimentos lúdicos. Utilizando Kierkegaard para
desmascarar e denunciar a arte multiforme de Picasso, Hans Sedlmayr sugeriu
certa vez que em lugar de ver a orgia metamórfica do pintor moderno como um
feliz resultado da vitalidade dionisíaca, deveríamos vê-la como o resultado
niilista de um egoísmo vazio: a alma oca do "homem estético", de
acordo com o dinamarquês. Febre e Angústia em lugar de energia copiosa -
poderíamos afirmar que o frenético experimentalismo do cenário pós-moderno se
libertou disso?...
Em seguida, há a
contradição entre a forma auto-referente e sua completa dependência da interpretação.
Estaremos em melhor situação com a insistência pós-moderna nos esquemas
metafixionais? Na melhor das hipóteses, a propaganda pós-moderna se limitou a
alardear algo apenas insinuado pela utopia modernista, a saber, que a liberdade
da arte arquiexperimental é uma metáfora de liberação social. A insistência
numa metáfora estava no âmago da teoria Tel Quel na sua aguda fase maoísta, por
volta da metade e fins da década de 1960. Hoje, contudo, ninguém parece ansioso
em se convencer dessa falácia, da possibilidade de trocar uma analogia dúbia
por meio real de dirigir a história. Para começar, encaramos com muito mais
sobriedade o radicalismo revolucionário e a esperança numa mudança integral,
radical. E principalmente nos tornamos desiludidos pela revolução como uma
espécie de art pour l’art, pela revolta como se fosse um ritual.
Todas essas questões
sugerem duas conclusões. Primeiro, que o pós-modernismo ainda é em grande parte
uma seqüência, antes que uma negação, do modernismo - sem qualquer aprimoramento
visível. O pós-moderno é, no melhor dos casos, um ultramodernismo - uma
recriação extremada dos cacoetes vanguardistas. Os epígonos são freqüentemente
ultras, e nisso se constitui a maior parte da matéria pós-moderna:
irrecuperavelmente epigônica, tanto na arte quanto na teoria. Daí a exaltação
dos deuses obsessivamente menores, marginais, secundários do panteão moderno:
Artaud, Roussel, Bataille, Webern, Mondrian, Duchamp. Uma arte de exaustão
(para citar John Barth) busca um pedigree de maníacos e excêntricos,
estabelecendo tradições modernas "alternativas" durante o processo.
Mas não importa quão extremista, a arte epigônica tende a permanecer em grande
medida subsidiária. Portanto, assim como em outros usos prematuros ou enganosos
do mesmo prefixo (por exemplo, em "sociedade pós-industrial",
correspondendo insuficientemente ao pós-modernismo em nosso sentido (c), o
"pós-moderno" é um conceito em grande parte espúrio. Em segundo
lugar, funciona como uma ideologia cultural cuja função é ocultar muito daquilo
que poderia ser mais contestável nos falsos humanismos de nosso tempo.
Agora, encerrando com
brevidade esses comentários, volto-me para a relação entre o pós-moderno (a) e
(b), isto é, para o pós-moderno enquanto teoria, em pensadores tão dessemelhantes
como Foucault, Deleuze, Derrida ou Lyotard.
Para Habermas, como
vimos, a glória da cultura moderna repousa na sua persistente distinção
kantiana em esferas de valor diferentes, autônomas: a ciência, a arte e a
moralidade; e o perigo da cultura moderna é a contínua atração pelos
reducionismos: cientificismo, politismo, esteticismo. Em prova disso, lênin ou
Baudelaire e Nietzsche foram tão reducionistas, em seus diferentes modos,
quanto os positivistas, antigos e novos. Conseqüentemente, o pensamento
pós-moderno, nietzschiano até os ossos, é uma traição daquilo que tem mais
valor na cultura moderna.
Deixem-me afastar-me
desse campo habermasiano. Podemos, admito, continuar nessa linha e ver o
ceticismo pós-moderno - a típica anulação ou suspensão de noções tais como
verdade objetiva ou universalidade de significado - como uma invasão modernista
da teoria pelos conceitos estéticos; ou se preferirem, como uma capitulação das
"idéias" ao ethos da "forma". O pensamento pós-moderno é o
habitat de wittgensteinianos metamórficos, para quem a verdade e o significado
são apenas funções ad hoc de jogos da linguagem infinitamente transformáveis.
Talvez algum dos
leitores se lembre de que Swift, n’A batalha dos livros (1704) - sua
contribuição satírica à questão dos antigos e modernos -, fez Esopo comparar os
modernos a aranhas, tecendo sua escolástica a partir de suas próprias barrigas,
enquanto os antigos, como abelhas, iam buscar o seu mel na natureza.
Possivelmente Swift estava errado com respeito aos modernos - mas nossos
pós-modernos são mesmo aranhas. Utilizam uma acrobacia narcisística, bizantina,
inflamada contra toda referencialidade, porque desejosa de transformar em
virtude a tremenda necessidade da impotência. Tudo é feito, sem dúvida, em nome
de uma grande presunção subjacente: de que a civilização moderna é pura tolice.
Contudo, sentimo-nos tentados a levar a interdição do mimético - esse primeiro
mandamento da teoria pós-moderna - para o campo da sua própria Kulturkritik. E
se a idéia de uma crise da cultura moderna, longe de espelhar a realidade
histórica, fosse uma ficção da imaginação humanista?
Afinal, é mais do que
esperado que nós, intelectuais humanistas, declaremos e deploremos a extensão e
amplitude da deterioração cultural - pois, se nossa civilização técnico-liberal
está indubitavelmente intrinsecamente doente, então quem são seus doutores
"naturais", enquanto seus diagnosticadores e os auto-intitulados
médicos? Bem, os intelectuais humanistas, sem dúvida. Assim, nosso interesse de
vendedores de teoria-da-crise torna-se penosamente óbvio; e a própria
consciência da crise pode muito bem ser, em grande escala, um efeito
"iatrogênico".
O pós-moderno, seja
arte ou teoria, significa ou um modernismo congelado ou uma vanguarda
enlouquecida - mas, em ambos os casos, seu significado profundo restabelece a
acusação modernista contra a época moderna. Assim se sustenta ou cai com a
força que uma tal acusação possa ter. Devo confessar que não estou
impressionado. E antes que alguém considere essa posição excessivamente
filistina, deixem-me lembrar-lhes que nenhuma superstição apocalítica jamais
foi necessária para que a arte genuína continuasse com "a recriação
imaginativa de perplexidade morais"- como afirmou sabiamente Hilary
Putnam. Temos coisa melhor a fazer do que permitir que nosso pensamento e
sensibilidade se escravizem a uma sovada e infundada ideologia de negação e de
desespero.
Postmodernism,org. por
Lisa Appignanesi, Londres, Free Association Press,1989. Tradução de Luiza Lobo
(Revista do Brasil, ano 2, nº 5/86), com revisão do autor.
(Ensaios sobre Arte e
Literatura, 1990)
* Crítico
literário, ensaísta, diplomata e sociólogo, membro da Academia Brasileira de
Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário