quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Ainda em abril

* Por Rubem Costa


Neste último dia, ainda em abril, nem é preciso pesquisar. Basta olhar de relance as efemérides que, mostrando no espaço a história de um povo, inscrevem no tempo um sopro de vida. E por aí se constata que abril é o mês mais brasileiro do calendário nacional. Nesse espaço de trinta dias, que se repete nos séculos abrindo a segunda terça de cada ano, agrupam-se os mais relevantes acontecimentos que, superpondo-se ao cotidiano, assinalam na rosa dos ventos de nosso destino os rumos da vida nacional. A começar dos primeiros vagidos da nacionalidade, quando aqui aportaram as caravelas de Cabral.

Eis que, na carta em que — mal ouvindo o grito de “alvíssaras meu capitão, terra à vista” — se apressou, como escrivão, em mandar a D. Manuel, Caminha já traduzia a certidão de nascimento da nova terra, informando inocente que nela em se plantando tudo dá; euforia natural de viajor despreparado que nem sequer desconfiava que nas praias paradisíacas, nas colinas edênicas e nas montanhas auríferas, já vicejava em misteriosa profundeza uma erva daninha da família das queixadas, vulgarmente conhecida como tiririca, que havia de se imortalizar na imagem solene dos nossos (nem tudo que a gente tem presta para alguma coisa) ilustres senadores, deputados e vereadores que fazem o milagre de muito colher sem nada plantar. Entretanto, apesar desses pesares, com a chegada das caravelas começa a transitar em abril a história de nossa gente com uma sequência de enobrecedores fatos que a dignificam.

Aliás, o mês seria até perfeito não fosse — para mal de nossos pecados — nele se encaixar o 1 de Abril — a data máxima da picaretagem — mui justamente dedicada ao já proclamado congresso nacional e seus derivados — estaduais e municipais. Todavia, em que pese ao castigo dessa caguira, é no mês que se registram os mais importantes acontecimentos pátrios, entre os quais — por ordem cronológica — encontramos: A primeira vitória de Guararapes contra o holandês invasor; o sacrifício de Tiradentes como marco da Inconfidência; a abdicação de Pedro I em favor de D. Pedro II; a inauguração de Brasília e o nascimento de uma das mais altas figuras da poética nacional, Vicente de Carvalho, personagem típica que nasceu no dia 5 de abril de 1866 e, por um dos caprichos do destino, veio a falecer a 22 do mesmo mês em 1924.

Um poeta que, como lembrei outro dia, encantou na data a atmosfera dos seus primeiros anos, rememorada nestes versos de alegria:
“Quando eu nasci, raiava
claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flores pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro”.

Diga-se, entretanto que, a par da visão poética, entre as tragédias do mundo e a grandeza do homem, inscreve-se inteiramente em abril um sentido místico de vida. Ao longo da história, na dialética da existência e no paradoxo dos acontecimentos, reacende-se no mês o conflito universal do ser. Se de um lado, em página universal, sem ordem cronológica, o calendário registra, em 1945, o fuzilamento de Benito Mussolini, na Itália, por guerrilheiros antifascistas, de outro, divulga, também auspiciosamente no Brasil, o nascimento em 1882 de José Bento Monteiro Lobato e de Manuel Carneiro de Souza Bandeira em 1886. Em abril ainda se divulga que, há 173 anos, precisamente em 1836, veio ao mundo um homem atormentado, a quem Ronald de Carvalho, ao estudar os quatro grandes nomes do romance naturalista brasileiro, classificou de o mais comovido dos nossos escritores ante o espetáculo trágico do mundo. Raul Ávila Pompéia.

Uma vida de contrastes e conflitos, de sonhos e desalentos que, sem dúvida, poderia ter servido de tema a Balzac para um capítulo da Comédia Humana. Uma vida que começa a se desenhar em O Ateneu, livro que, brotando da intensa sensibilidade de uma alma inquieta, iria chancelar um dos momentos altos da ficção nacional e servir de alerta ao espírito da nação para os efeitos dramáticos que se operavam na educação da juventude. Ali, na descrição mordaz de uma escola desajustada e nos traços pictóricos das inadequações sociais de um ensino desarvorado, descobre-se a comoção interior do homem em colisão com o meio. Drama da inquietude e da insatisfação de um espírito que, procurando compreender o suficiente do mundo, foi insuficientemente compreendido em seu ambiente. À semelhança de Rousseau, o desatrelamento do ente complexado entra, então, em desacordo com a grandeza do pensamento. Contraditório, mergulhado em angústia, dele conta-se que, envolvendo-se em violentas polêmicas políticas, foi vencido por Olavo Bilac, escritor tão solitário quanto ele, mas que via o mundo pela janela iluminada do parnasianismo. Sentindo-se humilhado, Pompéia desafia o poeta a duelo, e, inapto, sem familiaridade com arma de fogo, só não morreu por piedade, graças à grandeza interior do poeta que, intuindo a magnitude humana do ser, não levou avante um desfecho fatal.

Afinal, Bilac era coração que se dobrava generoso a ponto de ouvir estrelas —

(“E eu vos direi: amai para entendê-las,
pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”).

Um confronto jocoso entre o parnasiano e o naturalista em que o romancista foi ridicularizado por outra figura de muito menor porte de nossa literatura, Luiz Murat, que zombou do fato de ter usado de uma arma que nunca antes havia manejado. Envolvido pela tragédia interior, politicamente afrontado e socialmente desdenhado, não se conforma com o estado lamentável a que o lançou a crítica ferina. Sucumbe moralmente. Em desespero, na angústia de seus dias tristes, volta contra si mesmo a arma que zombeteiramente não soubera usar no tragicômico duelo. Põe fim à vida.

Desta vez, entanto, na crucificação de si mesmo, já não era abril. Mas, Natal de 1895. Ironia, aconteceu na única data em que, tradicionalmente, esquecendo a tendência mórbida do homem, as efemérides da imprensa, por exceção, trocam as notícias de morte para transmitir aos olhos do mundo uma imensa e imperecível anunciação de vida: — “Hodie de Virgine Maria Jesus Christrus natus est”.

Crônica publicada no Correio Popular de Campinas, em 30 de abril de 2009


* Professor, jornalista e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.

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