Astros e lampiões
* Por
Silva Ramos
Nas noites de Veneza,
quando a lua nova envolve numa cúpula de luz o zimbório de Santa Maria della
Salute, e as proas recurvas das gôndolas vão cortando o cinto de lhama bordado
no azul do Adriático, podem ouvir-se, acompanhados a mandolim, cantos como
este:
Amici, la notte è
bella,
La luna va spontare;
Di cà, di là, per la
città
Andiamo a fratoare.
Aqui, nesta Veneza
americana, quem quiser divagar, por noites de luar, o instrumento de que se
deve munir não é o mandolim, é o apito. E isto porque os legisladores
provinciais têm da lua esta elevada compreensão: que ela foi criada com o fim
meramente econômico de evitar aos municípios grandes dispêndios de luz, e, em
virtude desta idéia conspícua, estabelecem e determinam que a cidade se
abstenha de dar-se ao luxo de uma iluminação, em noites de luar.
Mas, meus senhores, é
necessário que se atenda a que nesta Veneza não são simplesmente os ais das
Desdêmonas que nos podem atravessar o coração, são também as facas das
capoeiras que nos podem perfurar os intestinos. Demais, os gondoleiros vogam
assim, por noites de lua, porque, como diz a trova, contam que, das janelas:
una fior caderà à...
à...
Ora, ninguém nos
afiança que seja precisamente uma flor o que nos cairá na cabeça, em uma noite
de luar, na Rua Direita.
Como luz, a lua tem
unicamente este defeito: o de não ser luz. Como há de alumiar, ela que, por sua
vez, necessita de ser alumiada? ela a fraca, ela a doente, ela a pálida lua dos
amantes? O seu reflexo mantém nas calçadas uma meia obscuridade, decerto muito
propícia aos Romeus em cujo seio as Julietas entornam suspiros, mas altamente
prejudicial aos fraques nas costas dos quais as cozinheiras despejam águas
duvidosas, da natureza daquela de que se queixava o poeta:
Ce n’était pas de
l’eau de rose;
mais de l’eau de
quelque autre chose.
Como elemento
econômico, ela só pode produzir uma coisa: o ridículo. Um astro encerrado num
decreto! A lua a render o lampião!! A marcha das esferas regida pela assembléia
legislativa! Tripudiai, ó musas da comédia, que não conheço nada mais
solenemente cômico. Não me espanto, se ainda vir, na folhinha: dia tantos de
tal mês, S. Bonifácio; candeeiros apagados no Recife, e se se organizar um
código administrativo, não deixará de se incluir um artigo como este: art. ...
À lua compete a iluminação da cidade nos dias tais e tais de cada mês.
Parágrafo único - A cargo do município fica velar pela rigorosa observância
deste artigo. E nem, ao menos, se recordam de que, na sua qualidade de rainha
da noite, ela é irresponsável, por uma disposição qualquer da constituição dos
astros, correspondente ao art. 99 da nossa Constituição.
E daí, tem caprichos,
volubilidade, inconstâncias; ao mais tênue vapor de água que se levanta do mar,
envolve-se no seu lençol de nuvens, com um desdém de soberana pela mesquinhez
dos municípios.
Francamente: que se
diria de um simples cidadão que, deixando penetrar a lua pelas janelas
amplamente abertas, se abstivesse, por uma sórdida isenção, de ordenar que
iluminassem as suas salas? Se Molière o visse, mandava-o à posteridade,
personificando-o em Harpagon; eu contentava-me com mandá-lo ao diabo,
chamando-lhe portuguesmente sovina. Ora, a verdade é que uma cidade não tem
mais direito do que um homem a ser miserável.
Pobre lua! Se a
vissem, como eu a vi, desmaiar diante de um globo Jablokoff, em presença de um
simples aparelho Drummond! Com que olhar enternecido ela enviava um último
sorriso aos seus velhos amigos, os poetas líricos!...
Quão outro não és tu,
ó sol! Ao mesmo tempo, brilhante e fecundo, diante da tua luz não há chama que
não esmoreça nem brejo que, ao teu calor, se não transforme em vergel.
Ergues-te, em cada manhã, à hora do trabalho e nós encontramos-te sempre, como
um bravo camarada. Nesta luta pela existência, em que combate a natureza
inteira, enquanto com a tua luz nos iluminas o trabalho, fertilizas, com o teu
calor, a terra que nos alimenta.
Como luz, todos os
deslumbramentos das fantasmagorias do Oriente não bastariam a dar um pálido
reflexo da tua flama brilhante, e, se aquele esquisitão do Diógenes acendia a
lanterna, ao meio-dia, era para ter o pretexto de fazer frases como aquela:
Procuro um homem. Esplêndida fornalha! Dizem que te apagaste apenas uma vez no
banquete de Tiestes, para o não ver tragando os próprios filhos que o irmão,
por uma extravagância imprópria de um deus, imaginara servir-lhe como molho de
vilão. É uma ficção, ó sol, mas uma ficção que te engrandece, e que já se
haveria convertido para mim em realidade, se eu não soubesse que tu, de então
para cá, tens assistido impassível a tantas patifarias, mais ou menos dolorosas
consoante o rigor dos tempos, desde as que praticava a Inquisição no afano de
fazer mártires, até as que utilizam as monarquias no processo de fabricar
deputados.
Mas, regressando ao
assunto: na exposição de eletricidade recentemente celebrada em Paris,
apareceram verdadeiras maravilhas luminosas: a lâmpada de Swan, por exemplo, de
claridade e nitidez deslumbrantes, o globo de Edison, com uma luz tão viva que
parece uma centelha desprendida do cérebro eminente do seu inventor. Ora, não
foi, decerto, para que continuem a alumiar-nos com uma luz reles o nosso quarto
ou a nossa rua, que esses clarões romperam assim aparelhados daquelas cabeças
gigantes.
Eu não pretendo o
sacrifício desta boa terra, até o ponto de exigir dela que se desentranhe em
Niágaras de luz, mas o que pedia era que, sendo possível, me fosse mantido, em
toda a sua pureza, quer haja lua, quer não a haja, o modesto bico de gás. É um
desejo imoderado de Pantagruel este meu? Embora! Eu não deixarei de impetrar,
com igual fervor, para a rua do Queimado ou para a Rua do Sebo, o que Goethe
pedia para si à hora da morte: Luz, luz, luz.
Por último, ó lua, tu sabes que o que digo de
ti é sans rancune. Tens visto como eu te acolho cheio de bons sorrisos, quando,
depois de apagar a minha vela, te insinuas mansamente pela janela do meu
quarto, com as sutis precauções de uma amante discreta; por isso me dói ver que
proteges, com o teu manto de luz, a sordície inqualificável de municípios
avaros.
Recife - 1881
*
Professor, filólogo e poeta, membro fundador da Academia Brasileira de Letras.
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