Ah, os menosprezos!
* Por
José Calvino
No Morro o calor era
grande. Chuviscava e, de vez em quando, ventava. À observação de minha
companheira, a quem chamavam de Conceição, perguntando se estava ouvindo
“Conceição”, na voz de Cauby, não consegui responder. Fiquei calado por alguns
minutos, até que uma sua amiga com voz alta recitou melodiando “Viver Morro”.
Ouviu-se de pronto uns tiros de arma de fogo e gritos.
- Minha Nossa Senhora!
– exclamou Conceição, ferida. – Não é bala perdida!
A sua amiga continuou
recitando “Balas perdidas”:
Balas perdidas,
Polícia ou Favela?
A maioria das vítimas
é gente humilde e trabalhadora...
Do Morro, eu gostava
de ver da janela gradeada do botequim da Mira, a linda paisagem. Do lado de
fora, uma ambulância esperava. Subimos para o socorro de urgência e, com a sirene
ligada a todo volume, descemos o Morro pela contramão até o Hospital da
Restauração. No leito do hospital ela dormiu e sonhou, alguns, que se tornaram
realidade na vida:
“Com a chegada do
Natal, os poderosos conseguem fazer um festival de hipocrisia, aos quatro
cantos do planeta, com festividades gigantescas... Mandam mensagens natalinas e
cristãs... Bilhões de dólares são derramados com gastos militares, apesar da
miséria absoluta dos países latinos e africanos...”
“- Morri! – pensou,
mas no mesmo instante se via ora sentada, ora de cócoras. As luzes das janelas
dos edifícios, para Conceição eram como as das favelas, tão distantes. Ela
ouvia várias intermitentes sirenes das viaturas das polícias Civil e Militar
abertas e buzinando descontroladamente, com luzes vermelhas e azuis
enfileiradas nas duas subidas do Morro. As escadarias, cheias de imundícies:
merda, lixo, vômitos... um homem louco, ora parecido com um padre, ora parecido
com um militar.
Como padre: ‘Em nome
do Pai, do filho e do Espírito Santo, amém...’.
Como militar: ‘Todos
ladrões, assassinos, bandidos, vagabundos, todos, todos... o lugar é na cadeia’.
Sobem as escadarias
vários padres, militares, mendigos, operários, catadores de lixo, prostitutas,
cegos tateando, todos pisando nos dejetos, vômitos, alguns caindo de escadaria
abaixo... Vozes: ‘É um inferno!’”
Como era de costume,
os jovens conversavam entre si. Na Era do Rádio ouvia-se muito na voz de Dalva
de Oliveira, a música de Herivelto Martins:
“Se o doutor subir lá
na favela
vai ver coisas de
cortar o coração
barracos caindo
crianças chorando
pedindo pedaço de
pão”.
E ainda:
“Barracão de zinco
pendurado lá no morro
pedindo socorro
lá no céu...”
As autoridades nunca
olharam e nem subiram os morros durante décadas, e hoje o que vemos? Aonde
iremos nós?
Ouve-se “Conceição”,
na voz de Cauby:
“Conceição
Eu me lembro muito bem
Vivia no morro a
sonhar
Com coisas que o morro
não tem...
Se subiu
Ninguém sabe, ninguém
viu
Pois hoje o seu nome
mudou
E estranhos caminhos
pisou...”
Muitas vezes perguntei
a mim mesmo, como é possível aos moradores do Morro como Conceição suportarem
os menosprezos daquela vida? Certa vez, eu a fiz dizer o por quê de querer
mudar seu nome.
A maioria dos jovens,
após ouvirem “Conceição”, fica a imaginar como será a vida no Morro.
- Por onde anda
Avagina?
- Se mudou e nunca
mais voltou.
- Dizem que está no
Rio, e mudou de nome. Se fosse erro de grafia não precisava de advogado...
O seu pai assistia
filmes o tempo todo. Chamavam-no de “mago-da-tela”, porque ele sabia os nomes
dos artistas de cinema de cor: Marlon Brando, Humprhey Bogart, Cornel Wilde,
Victor Mature, John Wayne, Robert Taylor, Alan Ladd, Gary Cooper, Errol Flynn,
Tyrone Power, Gregory Peck, Paul Newman, Charlton Heston, Burt Lancaster,
Arturo de Córdova... Marilyn Monroe, Sofia Loren, Elisabeth Taylor, Grace
Kelly, Dorothy Lamour, Ingrid Bergman, Greta Garbo, Ava Gardner e Gina
Lolobrígida... E foi em homenagem às artistas de cinema Ava Gardner e Gina
Lolobrígida que seu pai registrou-a em cartório como Avagina. Ava, de Ava
Gardner e Gina, de Gina Lolobrígida. (Risos)
- Estão dizendo que
ela é candidata a deputada federal...
- Avagina – Avagina –
diziam em coro – Avagina...
Nota:
O final desse texto
foi extraído do livro: “Drogas & Crimes”- Capítulos XVII, pp. 52-3 e XXIII,
p. 86.
*Escritor,
poeta e teatrólogo.
A escolha do nome não poderia ter sido pior. Aqui em Montes Claros tem uma professora muito conhecida que se chama Tilde, após mudança em cartório do nome original (e bota originalidade nisso) "Bucetilde".
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