Vão-se os dedos, ficam os anéis
* Por
José Isaías Venera
Vamos inverter o
ditado popular: “Vão-se os dedos, ficam os anéis”. Quando a pauta é uma velha
conhecida, a corrupção, mudam os personagens, mas a prática continua. Mas será
mesmo? Se a inversão funciona, o problema é estrutural? Se for, todas as partes
que compõem a estrutura estão envolvidas. Basta olhar um pouco mais atento para
ver que o governo é como a ponta de um iceberg, escondendo o grosso da
estrutura que vem se expandido desde que o Brasil é Brasil.
A imprensa não fica de
fora – basta retomarmos o velho debate sobre a autonomia relativa do jornalista
em que este se vê subordinado a uma rotina de produção, no veículo de
comunicação, transformada em norma. Isto deixa o debate sobre a noção de
liberdade com um ar de romantismo que ninguém mais leva muito a sério, não
deixando de ser apenas um princípio para legitimar o jornalismo e compor a
identidade do jornalista. A esse processo, Nelson Traquina chama de ethos, que
vai forjar um modo de agir, de ser e de vivenciar o jornalismo. Mas o veículo é
uma empresa que tem interesses políticos e econômicos e age também para
interferir na partilha do Estado. Em alguns casos, esses interesses ficam mais
explícitos, em outros, aparecem em forma de erro.
Um exemplo do momento
é a “gafe”, como corriqueiramente se fala, da jornalista da GloboNews, Renata
Lo Prete, durante a apresentação do Jornal das Dez, na terça-feira (8/03), ao
se referir duas vezes a Dilma Rousseff como ex-presidente. Não à toa, e para
precisar, atos falhos vêm revelar conteúdos que deveriam ficar sob sigilo. Na
psicanálise esse lugar em sigilo é o inconsciente. No jornalismo, pode-se dizer
que é o lugar ideológico, em que seu conteúdo verdadeiro deve ser mantido sob
sigilo aos olhos do seu público, como, por exemplo, na falta de equidade ao
noticiar casos de corrupção.
O ato falho vem como
um erro, o que escapa dessa intenção de deixar oculto o que não se pode tornar
público. Depois que o jornalista Gerson Camerotti corrige o erro da
apresentadora, seu reconhecimento foi ainda mais revelador: “Estou confundindo
as bolas”. A confusão foi de não conseguir deixar sob sigilo o que se deseja ao
notificar tais fatos e sob determinado ponto de vista.
Mas, tudo isso vem
compor um grande espetáculo para mediar as relações sociais. Vejamos os fatos.
A semana mal começou e, após a condução coercitiva levando o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva para depor na 24ª fase da Operação Lava Jato, o que mais
se viu nas redes sociais, com repercussão na grande imprensa, foi a convocação
para a manifestação contra o governo da presidenta Dilma Rousseff no domingo
(13/03).
Ficamos com a
percepção de que as funções, às vezes, parecem invertidas. A grande imprensa,
em alguns casos, age como se fosse assessora da oposição, já que não tem fatos
para construir uma notícia, apenas divulgar o que está agendado. Não foi assim,
por exemplo, que se fez com os recentes shows da banda Rolling Stones no
Brasil? É a chamada mídia espontânea. É certo que no caso da banda o espontâneo
vem como um plus, uma divulgação a mais do que já foi pago.
Os passos para mudar
os dedos dos anéis
Nos protestos de 15/03
do ano passado o comportamento da grande imprensa foi o mesmo. O filósofo
Vladimir Safatle, à época, chegou a afirmar que era “uma verdadeira notícia
antes do fato. Depois de todo este trabalho, não tinha como dar errado”.
Primeiro, uma suposta
delação premiada (que em breve deve ser confirmada) do senador Delcídio Amaral
que vaza do segredo de justiça e ganha destaque na revista IstoÉ (03/03). Em
parte podemos concordar com o argumento de Eugênio Bucci, de que é tarefa da
imprensa tornar público o que é de interesse da sociedade. O problema nesta
análise, com todo respeito ao Bucci – referência para todos nós –, é que as
ocorrências seletivas esgotam os pilares do jornalismo, da objetividade e da
imparcialidade.
No dia seguinte
(4/03), a Polícia Federal realiza busca e apreensão e condução coercitiva
levando Lula para depor. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco
Aurélio Mello, na ocasião se manifestou: “Condução coerciva? O que é isso? Eu
não compreendi. Só se conduz coercivamente, ou, como se diz antigamente,
debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor.”
Nem mesmo Franz Kafka,
em O processo, teria chegado tão longe com seu personagem Josef K., que acorda
certa manhã e vê dois policiais que estão ali para cumprir uma ordem de prisão
contra ele, que será submetido a um longo processo por um crime que permanecerá
desconhecido (sem considerar o final da história), tão desconhecido quanto a
suposta delação premiada do senador.
A verdade é o
espetáculo
Casualmente, a suposta
delação em sigilo e a operação vazam para a imprensa – sendo que do ponto de
vista do jornalismo foi resultado de um trabalho de investigação, cumprindo
assim a tarefa de defender os interesses da sociedade.
A manhã do dia 4/03 já
começa com o evento agendado pela imprensa. Parte dos espectadores não foram
pegos de surpresa e ficaram com a impressão de que nem a cobertura da morte do
papa João Paulo II, em 2 de abril de 2005 – considerada entre as maiores
coberturas da história do jornalismo –, cujo agendamento se justificava pela
previsibilidade dos fatos, ganhou tanto espaço no noticiário brasileiro.
Não demorou muito e o
acontecimento repercutiu internacionalmente. The Wall Street Journal, BBC, The
Guardian, El País, Le Figaro e Clarín já davam visibilidade para a condução
coercitiva de Lula.
As condições pelas
quais se deu a operação, batizada de Aletheia (que em grego significa “busca da
verdade”), resultaram numa sucessão de quebra de ritos – expresso pelo ministro
do STF Marco Aurélio Mello –, fazendo da própria noção de verdade uma invenção
do juiz Sérgio Moro com a parceria da imprensa – mas é certo que a mídia está
no seu papel, no que compete, a princípio, a ela.
A verdade é o
espetáculo. Mas entre uma e outras manchetes sobre o caso, podiam-se ler
algumas particularidades. Na Folha online de 5 de março: “Eduardo Cunha respira
com foco de operação em Lula e Dilma”. Se, de um lado, o que se tem é um
suposto depoimento, de outro sobram provas concretas – como documentos bancários
de contas correntes no exterior, documentos referentes à Petrobras e documentos
relativos à CPI etc. –, mas estas não são evidências à altura de um
acontecimento ao estilo kafkiano.
Lula é o sintoma
social
A pergunta vem como
uma ironia: como a Rede Globo sabia da ação da operação Lava Jato contra Lula?
Ironia que esconde uma alienação frente ao que já se sabe de antemão: não se
trata de fazer justiça, mas sim, de disputa do campo político. A corrupção é um
pretexto – já que ela é estrutural. Aqui, caberia a fala atribuída a Cristo:
“Atire a primeira pedra quem nunca pecou.” O que não significa ser conivente
com o desvio do dinheiro público, diferente de uma posição justiceira que, daí
sim, literalmente, segue essa máxima: caso contrário, Cunha não estaria ainda
na presidência do Congresso Nacional livre de panelaços e passeatas; Aécio já
teria sido indiciado pelo Caso Furnas e FHC não estaria imune à justiça desde
1997, com a compra de votos no Congresso para garantir a sua reeleição.
Por fim, todos sabem
que não é a corrupção que está na disputa. Sabem que o problema é outro, mas é
como se a verdade fosse dura demais para ser mostrada – lembremos do que Édipo
fez com seus olhos depois que o oráculo de Delfos revelou a verdade incestuosa.
A escolha de boa parte da sociedade tem sido não ver que a operação Lava Jato é
seletiva, assim como a grande imprensa na escolha do que entra na grande
vitrine do espetáculo. É essa falta de equidade na condução do processo que faz
do próprio objeto de denúncia uma verdade inventada.
Parecia que o país
tinha parado para ver o circo midiático pegar fogo. Se Lula é o sintoma social,
é também o objeto fóbico que produz cólera. Coloquemos esse raciocínio na ordem
do discurso de Lacan quando afirmou que foi Marx, e não Freud, quem primeiro
descobriu o sintoma. O sintoma como consequência do excedente produzido pela
força de trabalho e expropriado, o que na clínica psicanalítica aparece como
mais-de-gozar, na médica que os objetos apontados (ou as queixas) pelos
analisantes como causadores do mal-estar são apenas metáforas de um objeto
faltante que só se revela enquanto ausente.
Lacan é categórico nas
suas incursões marxianas: o proletário é o sintoma do capitalismo. O que isto
quer dizer? Que ele não faz laço social e por isso é sintoma social. Agora,
quando inserimos nesta lógica o lulismo, parece que algo não funciona bem. Os
oito anos de Lula presidente e o primeiro mandato de Dilma Rousseff foram
suficientes para erradicar a fome no país; para criar milhões e milhões de
novos postos de trabalho; ampliar, sobretudo, a presença de pobres e negros nas
universidades etc. Não seria este um gesto para fazer laço social?
Paradoxalmente, Lula e o PT deram mais oxigênio ao capitalismo, afastando a
possibilidade de uma revolução como única alternativa de mudança estrutural
para colocar em prática a utopia de esquerda de acabar com a exploração do
homem pelo homem.
Dialética da barbárie
Ao contrário disso,
colunistas conhecidos que integram este grande espetáculo midiático nem ao menos
conseguem omitir o desejo de ver a história se repetir no golpe militar. Na
coluna de política do O Globo do sábado (5/03), Ricardo Noblat nos dá pistas
disso já pelo título: “A crise ganhou um novo componente. Ele veste farda e
pilota também”. Às portas do golpe midiático-civil-militar de 1964, O Globo, em
20/03/1964, estampa a manchete “São Paulo de pé em defesa da democracia” ao
cobrir a “marcha da família” que pedia intervenção militar. Em 2013, no
editorial de 31/08, O Globo assume: “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um
erro”. Como temos visto, as palavras omitem o desejo de quem as pronuncia, mas
precisamos analisá-las como projeção do desejo, assim como no discurso atual do
Noblat.
"Não se reduz o
sintoma capitalista sem reduzir a desigualdade social. O grau zero dessa
desigualdade é a eliminação da diferença de classe (seria o próprio fim das
classes sociais). O sentimento que acomete o país não é pela corrupção – ela
não é pauta nova na cena política e empresarial. O que acomete o país é o
desejo de negar o direito de humanidade, de inclusão, de participação na vida
social. Se este raciocínio procede, Lula é a metáfora do que não se quer:
reduzir o sintoma social. Pode-se entender melhor por que o ódio a qualquer
discurso que não faça apologia ao capital. Aqui cabe a tese de Walter Benjamin
retomada pelo filósofo Giorgio Agamben: “Deus não morreu. Ele tornou-se
dinheiro.”
"Certa vez, em
análise, Suzanne Hommel narrou para Lacan um sonho que teve em que acordava
sempre às 5 horas, e acrescentou: “Era às 5 horas que a Gestapo vinha procurar
os judeus em suas casas.” Lacan, então, levantou-se imediatamente da sua
poltrona e faz um carinho no rosto de sua analisanda para, em seguida, falar:
“Eu entendi: geste à peau.” Se o sintoma é uma narrativa que se constrói sobre
um evento, Lacan ao evocar “gesto para a pele” no lugar de Gestapo, fez da
barbárie sofrida por Suzanne um gesto dialético de restituição da humanidade
onde parecia não mais existir.
"Barbárie é reduzir o
outro à condição de animal, retirando-lhe a palavra, o direito à fala, o
direito de se enlaçar numa narrativa que traga dignidade à sua vida. Quando
isso acontece, é preciso um gesto que restitua o sujeito na condição de humano,
de restabelecer os sentidos, ou seja, criar uma nova marcação no imaginário,
como no passar, por meio de um trocadilho de palavras, do significante –
Gestapo – para outro – geste à peau, fazendo Suzanne 40 anos depois ainda
lembrar do gesto de Lacan em seu rosto.
"Se trouxéssemos esta
experiência clínica – presente no documentário Um encontro com Lacan e
revisitada por Conrado Ramos em palestra ao Instituto Fox – para o campo
social, teríamos no lugar da analisanda de Lacan todos aqueles que se posicionariam
no lugar de resto do sistema. Chamemos o sistema, a alma do que se imagina ser
o capitalismo, como o grande Outro. O que colocaria, então, esse grande Outro
em risco é a sobra, o resto, o que não faz laço social com a ordem do sistema,
mas que reivindica seu direito na partilha. Por esta via, pode-se entender o
ódio daqueles que se identificam demasiadamente com o grande Outro ao insultar,
por exemplo, nordestinos (basta lembrarmos das falas de ódio na última eleição
para presidente), negros e pobres contemplados pelos programas sociais etc.
Aqui não se fala do pobre, negro, nordestino em si, mas de como os sujeitos
estão implicados com os discursos e com os eventos e fazem de suas falas e fala
do grande Outro.
A volta do sintoma
“Não há real, mas
processos de identificação, de tal forma que se poderia ter um sujeito
economicamente bem-sucedido que se coloca no mesmo gesto de Lacan, de trazer
dignidade aos que não fazem laço social (como os judeus impedidos de fazer laço
social com o nazismo).
“Nesse mesmo sentido,
proletariado não quer dizer operário, ou classe dos trabalhadores, mas uma
posição de resto frente ao discurso dominante. Se o ódio é porque o resto da
soma está sendo sublimado, elevado à condição de dignidade, Lula é o objeto
fóbico, o representante da representação (do resto da soma) do que não deixa o
grande Outro se efetivar por completo. Não à toa, vem ganhando volume a crença
de que o capitalismo depende da redução de impostos (há até os discursos mais
caricatos, de que seria preciso eliminar todos os impostos).
“Poderíamos dizer sem
receio que Lula é o objeto fóbico hoje da grande mídia. Também seu objeto
fálico – basta ver a histeria de pudor depois da divulgação do vídeo da
deputada Jandira Feghali em que aparece ao fundo Lula evocando um palavrão. A
título de exemplo, para falar de fobia, pensemos no cavalo para o pequeno Hans,
que Freud chamava de compensação e Lacan de metáfora. O cavalo funciona apenas
como a representação de outra coisa (compensando a repressão sexual). Por isso,
por estar no lugar de outra coisa, o objeto fóbico é plástico, podendo se
deslocar de um para outro (metáfora). Mas enquanto objeto que representa sempre
outra coisa que não ele mesmo, seus traços já bastam para causar fobia, como
ouvir o relinchar ou ver a imagem de parte de um cavalo numa revista etc. –
processo que Lacan, por sua vez, chama de metonímia. Ora, Lula não representa
ele mesmo, nem seus atos empíricos, mas sim, outra coisa que causa cólera nos
sujeitos demasiadamente identificados com o sistema que favorece poucos em
detrimento da maioria. Basta ouvir sua voz, ver sua barba, ou até mesmo a
ausência de um de seus dedos (processos metonímicos) para o sintoma retornar
com toda violência.
“Nada mais revelador
do que a linha de apoio da coluna de Reinaldo Azevedo na Veja.com um dia depois
da condução coercitiva de Lula: “Pelo visto, líder petista quer sangue nas ruas
para ver se continua vivo, como um vampiro. Não é o caso de ceder à provocação
dos zumbis.” Revela seu desejo de eliminar o objeto fóbico sob pena de não
salvar o sistema a quem é servil.
“O que significa
eliminar o mal pela raiz? Deixar que o resto que não faz laço social no
capitalismo morra sem que se torne sintoma para os que estão identificados com
o sistema?”
*
José Isaías Venera é jornalista e professor universitário
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