sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Marcantonio


* Por Alberto da Costa e Silva


Houve uma época em que eu ia com certa frequência a São Paulo e sempre guardava um pedaço de tarde para ir ver, em sua galeria, Marcantonio Vilaça. Para aprender com ele o que havia de novo nas artes plásticas e banhar-me de inteligência e sensibilidade. Marcantonio era um grande conversador, desses em que uma afirmação contém uma raiz de pergunta, para manter sem pausa ou silêncio o correr do diálogo. Lembro-me que era assim que discutíamos: perguntando. E discordávamos quase o mesmo tanto que coincidíamos, às vezes para ver até onde era capaz de ir o outro.

Marcantonio, por exemplo, fingia não compreender que eu dedicasse o mesmo afeto a pintores tão distintos quanto Chardin e Rubens, ou quanto Albers e Hopper. Ficava, porém, feliz quando expúnhamos as mesmas razões para louvar Braque, ou quando, juntos, percorríamos, com admiração semelhante, uma série de desenhos de Mira Schendel. Ou quando tínhamos na mesma apreciação negativa pessoas que se queriam artistas e não o eram. Para alguns, Marcantonio reservava uma caridosa ironia. Com outros, não tinha paciência. E não faltavam aqueles sobre os quais mantinha esperança de que estivesse errado o nosso juízo.

Guardo dessas tardes lembranças que não quero que se apaguem. Nelas tive por mestre um rapaz que podia ser meu filho e que conheci menino, na casa dos pais, meus irmãos de alma e de bem querer, Maria do Carmo e Marcos Vinicios Vilaça. De calças curtas, Marcantonio já tinha olhos que sabiam ver e, mal saído da adolescência, começou a montar o seu museu imaginário, no qual as salas mais espaçosas eram as dedicadas à arte de nosso tempo, sobretudo à que se autorrotulava de vanguarda.

Os mais velhos tínhamos gosto em provocar o rapazola atrevido, arguto e apaixonado, para ouvi-lo defender com convicção e entusiasmo as instalações, os happenings, as obras impermanentes, que cumprem o seu destino no processo de serem feitas, como as esculturas de açúcar e as pinturas que se apagam tão pronto concluídas. Não escondia, porém, o seu apego às criações duradouras, que conservamos conosco para ver e rever, mostrar e remostrar, e disso dava claro sinal no empenho com que, desde cedo, começou a colecionar obras de arte.

Bastou um nada para passar de colecionador de arte a marchand. Comerciava como quem coleciona, a escolher os que tinha por melhores e a promover aqueles que respiravam futuro. Ganhou fama de apostar sempre bem e tornou-se um descobridor de talentos, respeitado no País e fora dele. Pois se foi impondo, por seu bom gosto, seriedade e audácia, entre os grandes de sua profissão. Seus êxitos geravam novos sonhos. E não foi menor o de levar para as galerias de prestígio dos grandes centros de arte os artistas brasileiros com quem trabalhava, e de incluí-los rotineiramente nos circuitos internacionais de exposições.

A isto se dava de vontade inteira, quando passou do tempo para a eternidade. Recordo-me da voz comovida que me deu a notícia. Senti que meu coração tinha de suportar duas mortes: a do meu amigo Marcantonio e a do filho de meus amigos Carmo e Vilaça. Eu aprendera com os meus poetas como consolar-me da morte de um jovem, mas não a aceitar a morte de um filho, dor que, por mais belo e sentido que seja, nenhum Cântico do Calvário retrata, nem a constância das lágrimas lava.

Todo filho é filho único. Único. Insubstituível. Por isso, quando se têm vários e um deles se vai, não se perde um filho, mas o filho. O único. O insubstituível. Cuja ausência se veste de uma saudade que machuca mais do que conforta.

Jornal do Commercio (PE), 21/04/2015


* Diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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