Herois do Recife para meninos
* Por
Urariano Mota
Lembro os sem nomes,
aqui nomeados pela primeira vez. Lembro a professora Termutes, do Ginásio
Ipiranga, que sumiu no tempo. Ela, Termutes, a professora Termutes, ensinou a
todos os alunos a dádiva da leitura em voz alta, e de tal modo que parecia
formar atores do rádio, pelo que ela sabia extrair do texto com pausas,
ênfases, inflexões na voz conforme o sentido da palavra escrita. No antigo
segundo ano primário.
Lembro Euclides, o
desenhista Euclides, soldado de polícia aposentado depois de um AVC,
"derrame", como chamávamos. Euclides ensinava a desenhar de graça a
quem aparecesse, na terra, no chão de um beco da Rua Alegre, ou sobre a riqueza
de um papel de embrulhar pão, mas sempre os desenhos de perfil de duas cabeças:
primeiro, de um sargento da polícia militar de quepe, com destacada pala;
depois, a de um índio, com exuberante cocar, que era símbolo da TV Jornal do
Commercio. Mas como Euclides desenhava bem as suas duas únicas figuras. Quanta
paciência ele punha na mão trêmula ao desenhar o perfil do sargento que ele não
fora, e com tal zelo que em Euclides descia água da boca, uma baba que umedecia
o chão.
Lembro Jussara, de
pele morena e misturada no rosto com traços de índia. Pequena de altura, mas
elegante, docemente perfumada, com uma inteligência e graça que poucas vezes
pude ver depois em qualquer mulher adulta. Quanta generosidade havia na sua
beleza. Ela, tão franca e altiva, se deixava amar e sabia que era amada pelos
olhos mais grosseiros.
Lembro Zelita, a moça
solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia.
Perdoem a barbárie, mas era assim, pessoas recebiam o tratamento de inválidas,
estúpidas e loucas, porque de repente caíam entre convulsões. Quem tocasse na
sua baba seria eletrocutado, passaria também a sofrer descargas nervosas. No
entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas
de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que
era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar conta de
dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem
calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita
nos desejava e abrigava todos como filhos, de todos os tamanhos.
Lembro a professora
Rosa a ensinar desenho e artes plásticas aos meninos pobres do Colégio Alfredo
Freyre. Alta, magra, com uma dedicação e afeto por aqueles jovens que um dia,
talvez, quem sabe, se Deus provesse, poderiam ser ilustres pintores. A bênção,
professora Rosa.
Lembro Dona Nicinha, a
gorda, mãe de Spinelli, que era uma cozinheira magistral, que teve os seus dons
elogiados por Gilberto Freyre. (O que é prova de muito bom gosto do velho
sociólogo). Dona Nicinha abria as portas da sua casa de pobre, de paredes de
taipa, de trabalho, mantida pelo marido, o gráfico Lindoso, outro herói em
silêncio, Dona Nicinha abria a sua casa todos os domingos para receber altos
convidados, as pessoas amigas da sua altura e condição social. Quando não, de
pior status. Todos ali compareciam em estado de prelibação, à espera da Sétima
Maravilha do Arruda e do Recife: o rocambole salgado, macio, a joia da
gastronomia máxima de todos os domingos. Compareciam na casinha de taipa da Rua
do Triunfo, para deixar ainda mais satisfeita Dona Nicinha, que satisfeita
ficava com a nossa emocionada satisfação.
Lembro os vendedores
de mel de engenho, que esquecidos da sua profissão, em prejuízo do seu pequeno
lucro, estendiam uma conchinha de mel para as mãos dos meninos sem dinheiro.
Lembro e lembro. E noto enfim que o traço comum a todos esses heróis foi a
doação do próprio corpo e da própria alma a outros, uma doação que vinha da sua
pessoa toda, íntegra e total. Eles, que tão pouco tinham para dar, deram mais do
que seria muito dar: a sua pessoa inteira.
Meus doces e
inesquecíveis heróis do Recife.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros
Texto tão forte quanto seus heróis. Reverencio a todos.
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