quarta-feira, 5 de outubro de 2016

População flutuante II


* Por Mara Narciso

O meu avô Petronilho Narciso dizia que Montes Claros, desde os seus primórdios em 1857, tinha vocação para capital, porque centralizava todo o norte de Minas, Mucuri, Jequitinhonha e parte da Bahia. Isso era surpreendente, pois, além da pecuária poucos atrativos havia. Terra infértil, diziam, nenhum curso d’água volumoso (tinha o Rio Verde Grande), longe do mar e a 420 km de Belo Horizonte, a cidade teve avanços pioneiros em relação a outras cidades. Em 1871 foi fundada a Santa Casa de Montes Claros, em 1926 chegou o trem de ferro e em 1944 a Rádio Sociedade Norte de Minas - ZYD7 fazia suas transmissões. Os jovens das cidades vizinhas, incluindo meu avô, vinham morar aqui.

Na década de 1970, acelerou-se a industrialização, devido à isenção de impostos proporcionada pela SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Quando esta fase terminou houve fechamento de várias fábricas, desemprego e galpões abandonados, só reaproveitados anos depois. A vocação econômica foi mudando conforme as décadas, hoje predominando a indústria, o comércio, a pecuária e a prestação de serviços, com destaque para as faculdades, atendimentos médicos e exames complementares. Aconteceu uma setorização, com área médica predominante nas imediações da Santa Casa, na Praça Honorato Alves, um lugar com árvores novas e boa sombra. Em todos os dias úteis, grande quantidade de pessoas é vista na praça.

A população flutuante e de poucos recursos vem das cidades vizinhas, zona urbana e rural para ser submetida a consultas médicas, exames e tratamentos diversos marcados para a parte da manhã e começo da tarde, e têm ali um local de referência para o descanso e espera da volta. Assim, durante todo o dia há pessoas sentadas ou até mesmo dormindo sobre toalhas, esperando horas, sob calor escaldante. O dia quase perdido proporciona estar com o médico por uns poucos minutos. Há lavadores de carro que dão segurança ao local, pois não se vê falar em roubos ou furtos. Corre água nas mangueiras, música alta, jogo de carta e dominó, e circulam muitas pessoas aflitas com suas doenças e com as demoras nos consultórios médicos, clínicas, laboratórios ou hospitais e a espera da condução até seu retorno para casa.

Alguns desses viajantes mal dormem, saindo da moradia por volta de duas ou três horas da manhã, chegando de táxi fretado ou de micro-ônibus da prefeitura. Descem ainda de madrugada e ficam por ali, em grupo ou sozinhos, aguardando os serviços abrirem. Depois que são atendidos, voltam ao local para esperar a condução. Isso quando os médicos não atrasam e os motoristas não os atormentam, ligando de instante em instante e algumas vezes até vão embora, deixando-os ao deus-dará. Poucos anos atrás não era assim, mas hoje a maioria está vestida como gente da cidade grande, e invariavelmente portam um celular. Por outro lado, alguns não trazem dinheiro e ficam sem comer, apenas bebendo água. Ali não tem banheiro público, e algumas mulheres estão grávidas ou carregam seus filhos doentes. Mal conversam, e os grupos pouco interagem. De um lado da praça tem um pátio circular, uma espécie de arena com uma mureta e nela ficam pessoas sentadas ombro a ombro, sem encosto, já que os bancos são insuficientes para todas. Olhando de longe, a praça está lotada, afinal é uma pequena multidão.

As lixeiras costumam ser desconsideradas por pequena parcela dessa população. A presença dela fez surgir um comércio peculiar e até certo ponto movimentado. Há carrinhos onde se oferecem CD, pipoca, sorvete, fruta, biscoito, salgadinho, água. Algumas pessoas leem ou escrevem nos celulares, mas a maioria se senta no meio fio dos canteiros e olha em volta, meio assustada, entediada, cansada e com fome. Exaustas pela espera e pela doença, mostram desespero e desalento em suas faces. Muitas não conhecem o lugar, se atrapalham, andam perdidas. Deve haver voluntários que apóiam essa gente merecedora de todo o respeito, mas é preciso fazer mais por ela.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Bom conhecer esse outro aspecto de Montes Claros, Mara. Espero que a situação hídrica da cidade, tão crítica há alguns meses, tenha melhorado um pouco. Abraços.

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  2. A chuva parou e o calor voltou, mas estamos otimistas. Deve chover este ano mais do que no ano passado. Obrigada, Marcelo!

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