terça-feira, 11 de outubro de 2016

Poesia é feita com palavras


O que é, ao fim e ao cabo, a poesia? Há uma infinidade de definições desse gênero pioneiro e nobre da Literatura. Algumas são tão extensas que chegam a configurar (sem exagero) verdadeiros ensaios e, ainda assim, não captam sua abrangência. Outras pecam pela ambiguidade (pudera!). Mas, entre as tantas definições que conheço, prefiro a seguinte, do filósofo da arte e poeta francês Paul Valery, por sua óbvia objetividade: "Poesia é a tentativa de representar ou de restituir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que os gestos, as lágrimas, as carícias, os beijos, os suspiros procuram obscuramente exprimir". Ou seja, é uma obra literária que tem, como matéria-prima essencial, “a palavra”. Seu uso inadequado, ou relaxado, “camufla” a emoção que inspirou o poema e não traduz, portanto, com a exatidão pretendida o que o poeta desejou exprimir.

O leitor mais crítico certamente observará (não sem completa razão): “Espera aí, meu! A comunicação, seja ela qual for (e não necessariamente a literária) não depende umbilicalmente da palavra para cumprir seu objetivo, o do entendimento entre duas ou mais pessoas?!”. Claro que sim! Comunicar-se por gestos pode, até, eventualmente, funcionar. Mas raramente é eficaz. Eu diria que nunca. Mas... Se, na comunicação objetiva, de um fato, de um pensamento, de um desejo, ou seja lá do que for, ela é essencial, imaginem para coisas subjetivas e abstratas como emoções e sentimentos!!!

Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valery (nome completo do poeta simbolista francês e filósofo da arte, nascido em Sete em 30 de outubro de 1871 e falecido em Paris, em 20 de julho de 1945), justifica assim sua definição: "O poeta é uma espécie singular de tradutor, que traduz o discurso ordinário em ‘linguagem dos deuses’. Seu trabalho interno consiste não em procurar palavras para suas idéias, mas em procurar idéias para suas palavras e seus ritmos predominantes". Admito que nem todos pensam como ele. Um dos que divergem de Valery é o escritor Érico Veríssimo. Em determinado trecho do capítulo 14 do seu romance “Olhai os lírios do campo”, o festejado romancista gaúcho escreve: “Aí está... A verdadeira poesia é a poesia da máquina, da pedra, dos arranha-céus. Nova York é um poema de pedra e cimento armado – mas não se trata de poesia feita de palavricas açucaradas e sim de expressões duras e fortes como o aço. E flexíveis também”.

Érico, todavia, refere-se, certamente, à poesia latente, a que existe por toda a parte, mas que nem todos conseguem captar, quanto mais consubstanciar de forma concreta, racional e inteligível, em texto. Mesmo esta (ou principalmente esta) precisa de palavras para se  concretizar e, objetivamente existir. Em reforço, todavia, à definição de Paul Valery, pincei duas declarações de Victor Hugo (de seu livro, um tanto raro, “William Shakespeare”, lançado no Brasil pela Editora Campanário). A primeira é esta: “O poeta na verdade faz mais do que contar, ele mostra. Os poetas têm em si um refletor, a observação, e um condensador, a emoção; daí esses grandes espectros luminosos que saem do cérebro deles, e que se vão flamejando para sempre na tenebrosa muralha humana”. A segunda é mais obscura, mas nem por isso menos real. Diz: “Deixemos passar a lógica de Deus. É nessa lógica que o poeta bebe a sua fantasia”. Mas tudo isso só pode ser expresso, insisto, com palavras. E, quando não houver nenhuma que se adéqüe ao que se propõe a expressar, o poeta recorre á criação de neologismos lógicos, coerentes e inteligentes, ou, como faz mais vezes, lança mão de metáforas adequadas, enfáticas e expressivas.

Paul Valery escreve, no ensaio “Poesia e pensamento abstrato”: "O poeta desperta no homem através de um acontecimento inesperado, um incidente externo ou interno: uma árvore, um rosto, um ‘motivo’, uma emoção, uma palavra. E às vezes é uma vontade de expressão que começa a partida, uma necessidade de traduzir o que se sente; mas às vezes é, ao contrário, um elemento de forma, um esboço de expressão que procura sua causa, que procura um sentido no espaço da minha alma... Observem bem esta dualidade possível de entrada em jogo: às vezes, alguma coisa quer se exprimir, às vezes, algum meio de expressão quer alguma coisa para servir". E não é? Fico pensando o que Valery diria caso lesse estes meus óbvios comentários.

Suponho que diria algo parecido ao que escreveu em seus “Cadernos”, sob o título de “A síntese da poesia”:

“Zombam de você,
que tentou fazer
a síntese da poesia.
Eles têm razão,
mas você também não está errado”.

Pelo menos espero não estar.


Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. Paul Valery é bom. Obrigada por trazê-lo.
    Destaco: "Seu trabalho interno consiste não em procurar palavras para suas idéias, mas em procurar idéias para suas palavras e seus ritmos predominantes."
    Quanto aos surdos, que não conhecem as palavras? O sentimento deles é igual aos nossos, ainda que sem uma expressão verbal para eles? Mesmo na língua dos sinais, eu vejo emoção na expressão facial dos não ouvintes. É um universo que merece uma análise a parte.

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