Lições para a caçarola nacional
* Por
Paulinho Assunção
1 – Com a certa e exata pitada de sal,
com a exata medida das ervas e dos condimentos, podemos dar a bússola a um
gosto desnorteado. Então, caros amigos, nem tudo está perdido. Todo gosto, todo
paladar pode ser apurado.
2 – Não é só na culinária. Não é só na
mistura dos ingredientes, não é só no bem-aventurado equilíbrio entre o tempero
e o modo de fazer que apuramos aquele gosto sem bússola, aquele gosto sem
norte. Não, claro que não.
3 – O gosto pela leitura, pelos livros,
por exemplo, pode ser apurado. De que modo? Com livros e leitura. Também o
gosto pela música. Também o gosto pelo ver, pelo sentir, pelo viver. E também o
gosto do cidadão.
4 – Um cidadão com o gosto apurado
jamais suportaria tragar um político cujo tempero das propostas cheirasse a
ranço. Um político demagogo, por exemplo, teria um excesso de sal na sua
mistura ou, em linguagem de confeiteiro, teria muito chantilly em cima de pouca
torta. E um cidadão de gosto exigente saberia com certeza recusar suas iguarias
— aliás, falsas iguarias.
5 – O que dizer de um político
corrupto? O que dizer do corrupto, seja ele político ou não? Um cidadão cujo
gosto foi sendo apurado na sua bem exercitada vida cidadã não provaria jamais
dos quitutes de um corrupto. Quitutes, quem sabe, para alguns até sedutores
(pois há gente com gosto para tudo), mas com uma cápsula de cianureto escondida
no seu interior.
6 – O que é a vida digna de um cidadão
senão o exercício do gosto — gosto, vale insistir, bem apurado? O gosto pela
mesa bem posta e farta; o gosto pela moradia humanizada; o gosto em ver os
filhos na escola; o gosto por sua rua, seu bairro, sua cidade, seu país; o
gosto em respeitar e fazer-se respeitado.
7 – Mostre-me o seu tempero que te
direi quem és — eis uma paráfrase do antigo provérbio que poderia ser aplicada
ao longo de nossas vidas. Por exemplo: ao cidadão de gosto apurado, bastará uma
olhadela na caçarola do governante para saber que dali não sairá coisa que
preste. A caçarola de Hitler, por exemplo, era certamente uma caçarola de
temperos sinistros. E a caçarola dos que atravessaram a história pelos séculos
afora? E as caçarolas d´agora?
8 – O grande cozinheiro Oswald de
Andrade acreditava que, um dia, a massa comeria os biscoitos finos que ele
fabricava no seu forno Pau-Brasil. Não há como discordar do velho antropófago
da cultura brasileira. Contudo, este é ainda um país da fome e, portanto, antes
de tudo é preciso que o povo tenha o biscoito.
9 – Nada, porém, que comprometa o
exercício de refinar o gosto nacional numa grande cozinha comunitária chamada
Brasil. Sua excelência quer se eleger a cargo público? Vamos então testar o seu
tempero. Nós preparamos a nossa mesa e o digníssimo candidato terá de nos
provar que sabe equilibrar na caçarola os condimentos de uma vida justa.
10
– Se o candidato tiver competência na preparação dos acepipes, os acepipes da
distribuição de renda, das desigualdades sociais, então, votaremos nele. Se
souber fazer apenas pastéis de vento, estará reprovado.
* Poeta,
ficcionista e jornalista, tem mais de uma dezena de livros publicados. Foi
membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, a
convite de Murilo Rubião, e repórter na sucursal mineira da Agência Estado (O
Estado de S. Paulo). Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, de 1983, com
"Diário do Mudo", Poesia, e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães
Rosa, categoria Contos), em 1998, com "Pequeno Tratado Sobre as
Ilusões", editado em Portugal pela Campo das Letras. Dedica-se à escrita
e, também, quando tem vontade, à produção de livros artesanais pela sua
“Edições 2 Luas”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário