segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Lições para a caçarola nacional



* Por Paulinho Assunção


1 – Com a certa e exata pitada de sal, com a exata medida das ervas e dos condimentos, podemos dar a bússola a um gosto desnorteado. Então, caros amigos, nem tudo está perdido. Todo gosto, todo paladar pode ser apurado.

2 – Não é só na culinária. Não é só na mistura dos ingredientes, não é só no bem-aventurado equilíbrio entre o tempero e o modo de fazer que apuramos aquele gosto sem bússola, aquele gosto sem norte. Não, claro que não.

3 – O gosto pela leitura, pelos livros, por exemplo, pode ser apurado. De que modo? Com livros e leitura. Também o gosto pela música. Também o gosto pelo ver, pelo sentir, pelo viver. E também o gosto do cidadão.

4 – Um cidadão com o gosto apurado jamais suportaria tragar um político cujo tempero das propostas cheirasse a ranço. Um político demagogo, por exemplo, teria um excesso de sal na sua mistura ou, em linguagem de confeiteiro, teria muito chantilly em cima de pouca torta. E um cidadão de gosto exigente saberia com certeza recusar suas iguarias — aliás, falsas iguarias.

5 – O que dizer de um político corrupto? O que dizer do corrupto, seja ele político ou não? Um cidadão cujo gosto foi sendo apurado na sua bem exercitada vida cidadã não provaria jamais dos quitutes de um corrupto. Quitutes, quem sabe, para alguns até sedutores (pois há gente com gosto para tudo), mas com uma cápsula de cianureto escondida no seu interior.     

6 – O que é a vida digna de um cidadão senão o exercício do gosto — gosto, vale insistir, bem apurado? O gosto pela mesa bem posta e farta; o gosto pela moradia humanizada; o gosto em ver os filhos na escola; o gosto por sua rua, seu bairro, sua cidade, seu país; o gosto em respeitar e fazer-se respeitado.

7 – Mostre-me o seu tempero que te direi quem és — eis uma paráfrase do antigo provérbio que poderia ser aplicada ao longo de nossas vidas. Por exemplo: ao cidadão de gosto apurado, bastará uma olhadela na caçarola do governante para saber que dali não sairá coisa que preste. A caçarola de Hitler, por exemplo, era certamente uma caçarola de temperos sinistros. E a caçarola dos que atravessaram a história pelos séculos afora? E as caçarolas d´agora?

8 – O grande cozinheiro Oswald de Andrade acreditava que, um dia, a massa comeria os biscoitos finos que ele fabricava no seu forno Pau-Brasil. Não há como discordar do velho antropófago da cultura brasileira. Contudo, este é ainda um país da fome e, portanto, antes de tudo é preciso que o povo tenha o biscoito.

9 – Nada, porém, que comprometa o exercício de refinar o gosto nacional numa grande cozinha comunitária chamada Brasil. Sua excelência quer se eleger a cargo público? Vamos então testar o seu tempero. Nós preparamos a nossa mesa e o digníssimo candidato terá de nos provar que sabe equilibrar na caçarola os condimentos de uma vida justa.

10 – Se o candidato tiver competência na preparação dos acepipes, os acepipes da distribuição de renda, das desigualdades sociais, então, votaremos nele. Se souber fazer apenas pastéis de vento, estará reprovado.  


 * Poeta, ficcionista e jornalista, tem mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, a convite de Murilo Rubião, e repórter na sucursal mineira da Agência Estado (O Estado de S. Paulo). Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, de 1983, com "Diário do Mudo", Poesia, e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa, categoria Contos), em 1998, com "Pequeno Tratado Sobre as Ilusões", editado em Portugal pela Campo das Letras. Dedica-se à escrita e, também, quando tem vontade, à produção de livros artesanais pela sua “Edições 2 Luas”.



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