sábado, 15 de outubro de 2016

Força estranha


O dia era 7 de novembro de 1995. Havia amanhecido magnífico, num misto de verão e de primavera. O céu era, como se diz, "de brigadeiro", completamente azul, sem uma única nuvem. O sol dourava tudo, o casario, as praças, as crianças brincando, os carros que refletiam sua luz, destacando o chafariz de águas cristalinas em frente. Alimentado, banhado, barbeado e vestido para trabalhar, saí a passear no jardinzinho de casa – uma ilha, um cubículo cheio de terra, de quatro metros quadrados, com um pinheiro no centro, algumas roseiras e várias flores silvestres, amarelas, azuis, vermelhas, brancas e lilases nas laterais, cercado de cimentados por todos os lados – à espera da condução que me levaria para o jornal em que trabalhava.

Absorto em minhas preocupações mesquinhas (que naquele momento achava importantíssimas, como se a vida consistisse apenas de contas a pagar e a receber, do desempenho dos filhos na escola, de notícias a editar sobre carros-bombas, negociações de paz, dívida externa, miséria etc.), mal enxergava o que se passava ao meu redor. E mal ouvia também. Um bem-te-vi persistente insistia em repetir seu coro, a pequenos intervalos, e me chamava a atenção. Abelhas zumbiam ao meu redor, em sua faina diária em busca do pólen. Um caminhão de entrega de gás passava ao longe, com sua musiquinha clássica, cujo compositor a maioria desconhece. Era um dia comum, comuníssimo, rotineiro, desses que passam despercebidos e dos quais nos esquecemos por completo quando terminam, por não serem "decisivos". Dos que não trazem nenhuma desgraça e nem a suprema felicidade (ou o que entendemos como tal).

Apesar do sol, de estar quente para aquela hora do dia, uma brisa cortava o ar e despenteava meus cabelos. Um aroma delicioso de terra e de flores como que me embriagava. Subitamente, sem atentar para o que fazia, pus-me a cantar, com meu vozeirão desafinado, tormento para ouvidos alheios, uma canção que, se não me falha a memória, foi composta por Caetano Veloso para Roberto Carlos.

"Por isso uma força
me leva a cantar
por isso esta força estranha no ar...",

Era o que eu trauteava distraído, tendo no ouvido, soando como se fosse real, uma grande orquestra de cordas e metais. E soava, também, a voz morna e romântica, claro, de um dos meus cantores preferidos interpretando a composição de um dos meus compositores prediletos em fundo. Via, volteando ao meu redor, enorme borboleta, multicolorida, de um tamanho que não me lembro de ter visto alguma vez igual a ela, com as dimensões exatas de minha mão aberta.

Suas asas mesclavam as cores negra, azul, laranja e um esverdeado cambiante, como um arco-íris. Volteava para cá, volteava para lá... Pousou em uma roseira, tornou a voar, voltou a pousar, retomou o vôo, isso por alguns minutos. Quantos? Não saberia precisar. O cenário levava-me a perder toda a noção de tempo. Eu, que havia levantado indisposto, com dor de cabeça, provavelmente estressado em virtude dos excessos de trabalho e de preocupação, da má alimentação e de um ciclo inadequado de sono, me senti revigorado. Experimentei a mesma disposição que tinha aos dezessete anos, quando achava que o mundo existia somente para que eu o conquistasse. Bem diz a sabedoria oriental que "um coração alegre faz tanto bem quanto os remédios".

Segui para o jornal com uma resolução tomada: “vou perpetuar este dia em uma crônica. É inconcebível que esta poesia explícita, natural, espontânea, viva, fique sepultada no esquecimento, como se nunca tivesse existido, apenas pela ausência de algum acontecimento marcante, positivo ou negativo”. Ao chegar à redação, porém, comecei a vacilar. "Será que não irão me considerar tolo? Escrever sobre esse tipo de assunto banal não seria pieguice? Não estarei correndo o risco do ridículo que tanto temo?".

Lembrei-me de uma afirmação do poeta Affonso Romano de Sant'Anna de que "é da banalidade que as coisas extraordinárias se alimentam". E, afinal, o que é importante? Ganhar dinheiro para gastar? Conquistar fama para ser esquecido? Lutar por um poder que nada pode? Ainda assim mantinha-me relutante. Finalmente, por amar os que me cercavam e até os desconhecidos (gosto, sobretudo, de pessoas), decidi perpetrar exatamente estas linhas (que resgato do meu arquivo, tantos anos depois). Afinal, como escreveu o cronista Oscar D'Ambrósio, "a crônica é um ato de amor, pois amar é transformar o cotidiano no inesquecível"... Só por isso, jamais esquecerei aquele dia.


Boa leitura!

O Editor.

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