terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Presente de grego


* Por Aleilton Fonseca

Um amigo quis me convencer de que somos iluministas tardios em plena selva do mercado pós-moderno. Nós quem? "Vocês, defensores da grande literatura". Fiz pose de novela: "Ma é vero, cáspita"? Segundo ele, temos mania de recomendar autores difíceis e obras volumosas, no vão intuito de ilustrar o massificado público de hoje. Eu titubeei diante da acusação, quase convencido do despautério.

Ilustremos a questão. Na metrópole, geralmente os vizinhos não se conhecem, não há tempo, somos todos suspeitos. Mas acontece. Fazia alguns meses, eu e minha mulher estávamos morando ali pelo Butantã, num sobrado geminado. Quando dei por mim, trocava bons-dias, boas-tardes com a vizinha, uma moça sisuda e de olhar desconfiado. Bastou um curto papo e descobrimos: éramos conterrâneos de outro estado, o que acelerou a nossa aproximação. Dia vai, dia vem, soubemos que ela faria aniversário. Eis o teste: qual o melhor presente para uma recém-conhecida, de uns 28 anos? Se o leitor respondeu: "um livro", pronto: é um iluminista tardio.

Tem gente que detesta receber esses presentes de grego, sobretudo se for a Odisséia de Homero. Minha mulher sugeriu A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector. Pelo papo se avalia o freguês: a vizinha não parecia ser uma leitora esclarecida. G.H. é um texto complexo... tem até barata! Escolhemos algo mais leve: Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres da mesma Clarice, uma agradável leitura. Lóri e Ulisses aprendendo a hora certa do amor. Pois bem: demos o livro.

Um mês depois perguntamos se havia gostado. A vizinha disse que ainda não lera. No outro mês havia começado, mas parara. Depois foi uma desculpa atrás da outra. Ela acabou declinando os títulos de sua preferência, best sellers de um conhecido e mui lido autor de narrativas de auto-ajuda espiritual. Tudo bem. Isto é uma democracia e eu mesmo já passei por Lou Carrigan e M.L. Estefânia. Li Gisele, a espiã nua que abalou Paris duas vezes. Um leitor evolui, gente! Mas, e o livro de Clarice? A vizinha me confessou que não dava para ler, não era bom como os seus prediletos. E lascou pedra em meus ouvidos: "Essa autora devia se chamar Chatice Lispector". Ai! fui atingido em cheio, as luzes me faltavam, mas resisti: Leia A Hora da Estrela. "Dessa autora? Não, obrigada." Tirou da bolsa um best-seller de seu autor de cabeceira. "Quer ler?" Eu até leria, mas agradeci, alegando falta de tempo. A moça se despediu e cá comigo pensei: Não fosse local tão fedido, eu sentava às margens do rio Pinheiros e chorava.

* Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.



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