Presente de grego
* Por
Aleilton Fonseca
Um amigo quis me
convencer de que somos iluministas tardios em plena selva do mercado
pós-moderno. Nós quem? "Vocês, defensores da grande literatura". Fiz
pose de novela: "Ma é vero, cáspita"? Segundo ele, temos mania de
recomendar autores difíceis e obras volumosas, no vão intuito de ilustrar o
massificado público de hoje. Eu titubeei diante da acusação, quase convencido
do despautério.
Ilustremos a questão.
Na metrópole, geralmente os vizinhos não se conhecem, não há tempo, somos todos
suspeitos. Mas acontece. Fazia alguns meses, eu e minha mulher estávamos
morando ali pelo Butantã, num sobrado geminado. Quando dei por mim, trocava
bons-dias, boas-tardes com a vizinha, uma moça sisuda e de olhar desconfiado.
Bastou um curto papo e descobrimos: éramos conterrâneos de outro estado, o que
acelerou a nossa aproximação. Dia vai, dia vem, soubemos que ela faria
aniversário. Eis o teste: qual o melhor presente para uma recém-conhecida, de
uns 28 anos? Se o leitor respondeu: "um livro", pronto: é um
iluminista tardio.
Tem gente que detesta
receber esses presentes de grego, sobretudo se for a Odisséia de Homero. Minha
mulher sugeriu A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector. Pelo papo se avalia
o freguês: a vizinha não parecia ser uma leitora esclarecida. G.H. é um texto
complexo... tem até barata! Escolhemos algo mais leve: Uma Aprendizagem ou O
Livro dos Prazeres da mesma Clarice, uma agradável leitura. Lóri e Ulisses
aprendendo a hora certa do amor. Pois bem: demos o livro.
Um mês depois
perguntamos se havia gostado. A vizinha disse que ainda não lera. No outro mês
havia começado, mas parara. Depois foi uma desculpa atrás da outra. Ela acabou
declinando os títulos de sua preferência, best sellers de um conhecido e mui
lido autor de narrativas de auto-ajuda espiritual. Tudo bem. Isto é uma
democracia e eu mesmo já passei por Lou Carrigan e M.L. Estefânia. Li Gisele, a
espiã nua que abalou Paris duas vezes. Um leitor evolui, gente! Mas, e o livro
de Clarice? A vizinha me confessou que não dava para ler, não era bom como os
seus prediletos. E lascou pedra em meus ouvidos: "Essa autora devia se
chamar Chatice Lispector". Ai! fui atingido em cheio, as luzes me
faltavam, mas resisti: Leia A Hora da Estrela. "Dessa autora? Não,
obrigada." Tirou da bolsa um best-seller de seu autor de cabeceira.
"Quer ler?" Eu até leria, mas agradeci, alegando falta de tempo. A
moça se despediu e cá comigo pensei: Não fosse local tão fedido, eu sentava às
margens do rio Pinheiros e chorava.
*
Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da
Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da
Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.


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