Uma semana inolvidável
* Por Urariano Mota
A receita de uma semana
inolvidável deve começar pelo computador. Se na culinária os ovos se quebram,
na vida de quem escreve o que se quebra é o computador. Os espanhóis chamam a
esta máquina pelo nome muito próprio de Ordenador. Isto deve ser porque
esta máquina nos dá ordens, que revelam, quando ela se ausenta, a desordem da
nossa vida real. Pero anoto a diferença de que na receita de um bolo os ovos se
quebram por desejo do mestre cozinheiro, enquanto em nossa vida o Ordenador se
quebra por ordem do Mestre lá em cima, no infinito. Tão longínquo e tão
próximo, pelos efeitos. A sua ausência é a sua presença, no monitor escuro.
O segundo elemento da receita é a
nossa absoluta ignorância das razões por que o Ordenador Supremo nos deu essa
ordem, de coisas, do inferno. Pensamos, diante do monitor, entre as trevas:
"É porque choveu muito....". (Deveríamos consultar antes do trabalho
os boletins meteorológicos, se vai chover, se irá chover muito, essa vontade
anunciatória do Ordenador?) Já sabemos então por quê, imaginamos. Quando chove
muito, o tempo esfria, a umidade, os ventos que vêm da praia batem inclementes
nos plugs, nos orifícios das tomadas, balançam os fios, oxidam e trazem a
maresia, que machucam e matam aqueles que vivem às ordens do Ordenador. É isto.
E, creiam, este passo da ignorância é um avanço, extraordinário, de um estágio
anterior. Antes, julgávamos e proclamávamos, todos poderosos: o computador é
uma ferramenta, o computador não passa de um instrumento para a nossa criação.
Idiotas éramos, idiotas somos menos agora, porque sabemos: nós é que somos um
instrumento da criação do Ordenador. Sem ele, queremos dizer, sem Ele, nada
somos. Como almas penadas sobrevivemos a vagar por entre as trevas do monitor.
Apagado, apagados.
O terceiro elemento é levá-lo a
um técnico, a um bom técnico. Para isto desligamos os fios, os cabos, com
cuidado para não olvidar a relação biunívoca de a cada plug o seu orifício,
único, e não outro. E com maiores cuidados deitamos o Cérebro do Supremo
Ordenador no banco traseiro do carro. Mas, pero e todavia ao descermos a rampa
da garagem a nossa esposa avisa: - "O pneu está baixo". Hem? -
"O pneu secou". Não acreditamos nisto, porque jamais podemos esperar
que a uma desgraça venha outra. Hem? Saímos e contemplamos: o pneu, de fato,
baixou. O pneu está baixo como o nosso ânimo, como o nosso dia, como os peitos
suculentos que sugávamos e não tínhamos consciência. Se o pneu está baixo, a
pergunta seguinte é: e agora? A vocês eu confesso que de pneus e de pneus
baixos nada entendo. Concedo, alguma coisa entendo, depois de muitas horas e
esforço e busca da posição exata onde se encaixa o macaco - sei, não sou tão
estúpido, debaixo do carro. Mas a minha esposa sabe que de nada eu sei. É da
intimidade dos casamentos. E por isto aconselha, "chame um homem".
Intimidade não leva à glória. O seu conselho é uma suprema humilhação. Eu, um
escritor, eu, um sei lá o quê, ter de procurar um homem como se eu não fosse um
deles. Está certo, confesso (e não aceito!) que eu não sou. E por isto fico
pleno de raiva, entro no carro, bato a porta com força e grito:
Eu vou assim mesmo.
-Você vai rasgar o pneu!
Ao que eu, este ser raivoso, com
mais fúria respondo, com uma confiança louca em minha conta bancária:
- Eu compro outro!
E saio a dirigir, a rodar com
três rodas, até um borracheiro salvador, que o Supremo Ordenador achou por bem
antecipar no meu caminho.
No quarto elemento da receita, o
técnico de computadores nos investiga. O "quebrado", e o culpado,
somos nós.
-Mas como foi isto? O que o
senhor fez com esta máquina?
-Eu trabalhei nela até tarde.
Hoje de manhã, de repente, ela não ligou.
-Sim, mas como você fez?
-Assim.
Acreditem. Introduzo o dedo
indicador – a esta altura um súbito temor me assalta com a dúvida, "não
seria melhor o polegar?" – e com ele faço entrar um botão preto, que entra
um pouco e volta. Nada. Satisfeito, ou insatisfeito, nunca sabemos, o técnico
se põe a investigar as condições em que trabalhamos. Não, ele não nos pergunta o
que comemos, o que bebemos, não. Ele nos pergunta se temos periféricos, a
saber, câmera, impressora, scanner.
Respondemos que sim, para quê?,
porque ele nos adverte:
-Aí reside o perigo. Os
periféricos podem ter mau contato. Eles travam o sistema.
-Devo me abster de periféricos?
-Não - e o técnico sorri contra
mim como um sábio sorri contra um parvo. - É preciso chamar um eletricista. O
senhor deve entender um pouco de eletricidade, suponho.
-Sim - balbucio. - Mas me fale
como é.
-Entenda, os três pinos do plug
correspondem aos orifícios do positivo, do negativo e do neutro. O neutro não
pode ter corrente, o senhor sabe.
-Sei, claro. O neutro é o neutro.
-Pois então. Se um pino for
enfiado em um orifício errado, adeus, sistema.
Eu respiro fundo, e como sou um
homem de muita coragem, pergunto:
- Mas como eu poderia saber onde
ficam o orifício do positivo e o orifício do negativo?
Em nome da educação, em nome da
gentileza, imagino, o técnico não responde a esta minha investida de ousadia.
Ele me responde como os adultos respondem à ingenuidade, à frágil inocência de
uma criança:
-Eu vou trabalhar agora. Depois
eu ligo para o seu telefone.
No quinto elemento da receita,
estou agora em uma casa de jogos, de vídeo game, que os jovens do Brasil chamam
de Lan House. Lã de carneiro, deveriam ser chamadas estas casas. Os carneiros,
os adolescentes pulam, saltam, balem, bailam, gritam, berram. Sirenes tocam,
tiros ecoam, explosões se ouvem. E sei, porque a hora voa, registrada em um
relógio, que tenho de ser breve neste relato. Que um escritor não receba pelo
que escreve, é justo, em nome da arte e dos compromissos assumidos, é justo.
Mas que ele pague para escrever esta é, para mim, a receita inolvidável que é
urgente encerrar.
-Mata, mata – gritam os
adolescentes em torno de mim, agora, em fúria. - Ai, ai, ui, ui, ah, ah, ah.
Pá! Pá! Matei um.
Pago e saio. Receita de uma
semana inolvidável completa.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro
da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Quando o computador para, parece que o nosso coração foi que parou. Entendemos a fundo o seu desespero, Urariano.
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