O patinho bonito
* Por Urariano Mota
Hans Christian Andersen é um caso
raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por
adultos.
A gente escreve um parágrafo como
o que se vê acima e fica paralisado. Há quatro horas que não saio disto: Hans
Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para crianças com
mais gosto e amor é lido por adultos. E não seguimos adiante.
Julgávamos, desde a madrugada,
que esta frase ia ser um detonador fácil, de um tema tão fácil que poderíamos
começar a escrever quando quiséssemos. O resto é fácil, dizíamo-nos,
pensávamos, como um engenheiro de obra feita, antes de ser construída. Desde a
madrugada, enquanto pensávamos escrever sobre Andersen, que esta frase nos
veio. O resto é um passeio, dizíamo-nos, e corremos a anotá-la. Quatro horas
perdidas depois, dizemo-nos: melhor seria que não a tivéssemos escrito. Melhor
seria cortá-la, tão simples, não é? Uma frase que não gera, que não fecunda,
pode e deve ser cortada como um órgão ruim que se joga fora, refletimos. O
diabo é que a realidade do mundo da escrita é outra, distinta e distante do
mundo orgânico, quatro horas e meia depois anotamos. O caso, a dificuldade é
outra, não é bem de frase ruim, que se vence com um corte radical, um jogar
fora.
A dificuldade real, cinco horas
depois escrevemos, é dar continuidade à primeira frase por caminhos
discursivos, de ensaio, de demonstração por bons argumentos do que se diz, como
se o “Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para
crianças com mais gosto e amor é lido por adultos” tivesse que ser continuado
por parágrafos onde: primeiro se chamasse a atenção para a cautela em não se
dizer “literatura infantil”, para evitar a ambigüidade, como uma defesa contra
a broma, que chama infantil ao que deseja insultar; depois, fazer a ressalva de que outros autores para
crianças também geram um prazer em leitores adultos; por último, mostrar a
especificidade, o lugar original de Andersen, entre esses autores. Em resumo,
uma continuidade que se tornaria muito aborrecida, pesada, um texto sobre
Andersen que seria um antiAndersen.
Seis horas depois escrevemos:
falemos do Andersen que amamos, do Andersen que nos toca.
Falemos então do maravilhoso
conto “A pequena vendedora de fósforos”. Como os nossos quilômetros rodados de
leitura não são muitos, não podemos dizer que este é um dos melhores contos que
já se escreveram. Mas este é com certeza o melhor conto que já lemos em nossa
vida. A minha, mais precisamente, de cinqüenta e cinco anos. Aquela trajetória
da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas
geladas de uma cidade, que vislumbra deslumbrada, pelo vidro embaciado das
janelas, a ceia posta nas casas burguesas, e com profunda fome fica encantada e
nos encanta, seria uma coisa que nas mãos de um falso artista daria uma cena
piegas, digna de se ir às lágrimas, de raiva. Mas não nas de Hans Christian
Andersen. A fome e o lar, doce lar, vemos, nas suas linhas. Ah os perus rosados,
pingues, da noite de Ano, ah as tortas fresquinhas, deliciosas, da calma e
pacífica e confortável vida burguesa dos lares que se fecham egoístas à dor em
volta, toda essa felicidade, esse calor da lareira que vemos pelos olhinhos da
menina, nos chegam como uma repulsa, como um cancro, como um fel, de lares
(filhos da puta, dizemo-los), de lares doces lares que rejeitamos com todas
nossas forças.
Então Andersen vai mais longe, e
nos fere mais dentro do coração. Se o artista é o criador de imagens que são o
próprio domínio do divino, Andersen é um destes. Ele faz então a menina virar
uma estrela – que coisa sublime!, uma estrela no céu escuro, em que se torna,
ao cair e delirar de fome. Enregelada, a pequena vendedora sobe, “em um halo de
luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe... longe da Terra, para
um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem
medo”. Este é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta, em aulas de
português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não consegui. A voz
não me saía, embargava, quando chegava a este ponto da menininha que vira uma
estrela. Eu não conseguia vencer o conflito entre chorar e lhes gritar: “Se não
mudarmos este mundo, nada mais tem sentido. Vamos ser assaltantes, vamos roubar
e matar”. Mas, covarde, para não me mostrar o fraco que sou, e para não ser
incurso no Código Penal, apenas dizia-lhes:
- Mudemos de página.
E me virava para o quadro. Mas a
menina havia virado uma estrela, eu sabia, e por isso o branco da lousa estava
embaciado. Ainda que não fosse de vidro como as janelas por onde olhava a
vendedora de fósforos.
Este é o Andersen do qual não
conseguimos falar sem paixão. O criador de imagens extraordinárias, delicado
até a sutileza, até o perfume da rara poesia. Uma crônica bem escrita sobre ele
iria do Soldadinho de Chumbo ao Patinho Feio. Da Pequena Sereia à Roupa Nova do
Imperador. Uma crônica bem escrita sobre ele teria que dizer, como um pastiche
de Andersen, em boa e fluente linguagem narrativa, que Andersen é o outro nome
com que chamamos: Um homem de revolta mais que moderna, porque eterna. Um
criador de humanidade, porque da humanidade. O filho mais ilustre da Dinamarca,
porque um dos irmãos mais ilustres de todos os povos. O homem a quem a
sociedade hipócrita, de todos as sociedades, de todos os países, teima em
deixar na segura estante dos autores infantis. Mas que à maneira de sorrir, de
falar da fantasia, dos animais, dos seres inanimados, dos lugares distantes,
como quem nada quer, nos fere e nos morde. Como raros autores adultos. Não
tanto por ser um homem ou um autor agressivo. Mas porque nos fere e nos morde
pela verdade.
Se usássemos do mesmo tom que se usa em discursos ao pé do
túmulo ou de banquetes, diríamos: Hans Christian Andersen, como se fosse
insuficiente a tua humanidade, de amor universal pelos rejeitados, de dar voz e
afeto a qualquer objeto físico, tu nos deixas a luz, como se nada nos
deixasses, de que existe verdade e dor no mundo da fantasia. E de passagem, no
teu halo de homem de face triste, como se fosse um brilho inocente, a lição de
que a criança não é um homem idiota. Ela é um homem em permanente
descoberta, pareces-nos dizer. Ela é um
ser que escuta o preconceito, antes de ela própria ser atingida pelo
preconceito, tu nos contas, em palavras de narração viva. Não fosses o escritor
que és, com muita felicidade serias um instrutor de meninos de todas as idades,
deveríamos dizer.
E com tais expressões
grandiloqüentes apenas queríamos dizer: Andersen, muito te amamos. E
acrescentamos agora e ao fim, por pura e simples loquacidade: Enquanto houver
pequenas vendedoras de fósforos que viram estrelas no céu escuro; enquanto
houver soldadinhos de chumbo que amam dançarinas de papelão; enquanto houver
figurinhas de porcelana que se apaixonam e vivem até o dia em que se desfazem
em cacos; enquanto houver bonequinhos que ardem abraçados no fogo da lareira,
tu és, Andersen, o patinho bonito mais bonito, porque és o patinho feio mais
bonito que um dia conhecemos.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro
da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Cada um de nós já foi e continua sendo capturado por essas bem chamadas por você, Urariano, de "humanidades".
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