Exilados em Fernando de Noronha
* Por
José Lins do Rego
Eles iam para Fernando
de Noronha. O governo caíra em cima dos centros operários com uma fúria de
ciclone. Não ficou um que não fosse arrebentado e que os seus diretores não
comessem virola e cadeia. O Dr. Pestana, metido em prisão por umas horas, teve
a mulher para gritar por ele, habeas-corpus que o livrasse dos
constrangimentos. Os chefes operários iriam para Fernando. Lá estavam os
ladrões e criminosos curtindo penas. Para lá iriam os operários. Sebastião e o
povo da padaria de seu Alexandre estavam na lista para seguirem. Diziam os
jornais que Sebastião era um perigoso agitador e a padaria onde ele trabalhava
um foco terrível. Fernando de Noronha com eles.
Seu Lucas andava
triste. Foi ao desembargador que ele curara da mulher, mas o homem lhe
desenganou. Ninguém fosse falar ao governo em favor de operário. O governador
queria fazer uma limpeza na cidade, porque a canalha não deixava ninguém
descansar com esta história de greve todos os dias. Ele estava perdendo o
tempo. E a mulher de Jesuíno e os filhos nas grades do jardim do seu Lucas,
chorando.
- Vai para casa,
mulher! - dizia o pai-de-terreiro. Ele volta! Um dia ele volta!
E os filhos de Deodato
e os de Simão pedindo notícias a seu Alexandre:
- Foram para os
infernos! Perderam-se porque quiseram! Agora que agüentem!
Mas seu Alexandre se
lastimava. Os homens sabiam trabalhar de verdade. Os outros que tinham vindo
substituí-los não valiam nada. Onde encontrar um boca-de-fogo como Deodato, um
pãozeiro como Ricardo, um masseiro como Simão? Seu Antônio foi ao patrão e
disse mesmo:
- Precisas fazer voltar
esses homens senão eu me retiro.
- Voltar como, homem de
Deus? Já falei com o Dr. Demócrito. O governo faz questão de castigar, de dar
um termo a esta greve.
Não havia mesmo jeito.
Os homens iriam mesmo para Fernando. Seu Lucas, no jardim, andava triste,
debruçava-se sobre as roseiras sem entusiasmo. Os negros iriam para Fernando.
Jesuíno e Ricardo na ilha com os ladrões e criminosos. O jardineiro olhava o
chão pensando nos homens. O que tinham feito eles demais? Jesuíno e Ricardo não
mataram ninguém, não tiraram o alheio. Iam para Fernando. Seu Lucas viu o sol
nas suas plantas sem saber o que o sol fazia. Botava água nos canteiros, sem
saber o que a água fazia. Os amigos dele seriam mandados de navio para o mar,
para o meio do mar, com ladrões e assassinos. E os outros? Simão e Deodato?
Eram bons também, as mulheres também chorariam de fome. Por que não mandavam o
Dr. Pestana? De cócoras, mexendo na terra molhada, o velho censurava as coisas,
o velho sentia a miséria das coisas. Aquilo era uma ruindade sem tamanho.
Numa manhã, os homens
saíram para Fernando. Ricardo, Deodato, Simão, Jesuíno para um canto do navio
olhavam o Recife coberto ainda de sombras da madrugada. Viam vapores grandes no
cais, catraieiros trabalhando àquela hora. Mas havia um silêncio grande, um
silêncio medonho nos barcos dormindo e nas águas do rio. Eles olhavam para o
lado do cais e viam as casas e a terra que iam deixar. Simão para um lado,
triste, de cabeça baixa, Deodato dizendo:
- Se ao menos eu
pudesse ver os meninos!
E o negro Jesuíno
sentado em cima de umas cordas. Sebastião só fazia dizer:
- A gente volta. Um dia
a gente volta.
Ricardo olhava para
todos. Ele sentia uma vontade desesperada de vomitar, aquele cheiro aborrecido
de bordo lhe embrulhava o estômago. Iam para Fernando. Conhecera no engenho um
homem, um assassino que estivera em Fernando de Noronha. Chamava-se Noé e
contava tanta coisa triste de lá. Fernando de Noronha, ninho de tudo que era
homem sem remédio e sem jeito. Ele ia para lá e não sabia o mal que tivesse
feito.
- Homem, dizia Jesuíno
para Simão, o governo só faz isto porque não tem família.
- Eu até nem penso mais
nos meninos, respondia Simão. Vai se perder tudo, Jesuíno. Vai se perder tudo.
Deodato era mais forte:
- Não faz mal, eles
arranjam jeito de viver.
Sebastião, de pé:
- É isto mesmo. Se a
gente esmorecer, sofre mais.
Ricardo se lembrava da
mãe Avelina. Com que alegria ela recebera a carta dizendo que ele ia! Os negros
todos da rua se assanharam na certa com a notícia. Ricardo ia chegar calçado de
botina e de gravata no pescoço, como o José Ludovina no dia da eleição. Ricardo
no Recife não tirava a botina dos pés, mas agora era isto que estava se vendo.
Cercado de água por todos os lados, para o resto da vida. Morreriam por lá.
Agora o sol já cobria o
cais, já os sobrados altos se mostravam para eles. E o navio ia sair com pouco
mais, com as máquinas dando sinal. Eles viram então seu Lucas em pé no cais. O
vapor já não estava atracado. Seu Lucas dava com as mãos para eles. O negro
velho em pé, com o sol na cabeça branca, dando com os braços para eles. Ricardo
olhava para o amigo.Sempre ele tinha o que lhe perguntar nas grades de seu
jardim. O negro velho gostava dele. E o vapor ia saindo devagarinho. Simão
botava as mãos na cabeça para chorar. Deodato firme e Jesuíno gritando:
- Lá está pai Lucas!
Pai Lucas, toma conta dos menino!
Sebastião não dizia
nada. O vapor ia virando para o outro lado e eles correram para dar com as mãos
para o velho amigo. O negro velho em pé como uma estaca de cercado no cais de
cimento.
Os negros bons iam para
Fernando. O que tinham feito eles? dizia seu Lucas voltando para casa. O que
tinham feito eles, os negros que não faziam mal a ninguém? Jesuíno era uma
besta de bondade, Ricardo tão bom! Os outros deviam ser também. O que tinham
feito eles para ir pra Fernando? Seu Lucas não sabia. Queriam de comer, queriam
de vestir, queriam viver. E seu Lucas chegou no jardim com esta dor no coração.
Vira os seus negros no vapor mandados para Fernando. Murchassem as roseiras,
cortassem as formigas as folhinhas das plantas, secassem os canteiros. Os seus
negrinhos iam pra Fernando. Que tinham feito eles para ir pra Fernando? Seu
Lucas cuidava das plantas. Os trens passavam roncando pelas grades de seu
jardim. Passavam vendedores cantando as suas vendagens. O homem da vassoura
parou para falar:
- Soube, seu Lucas, o
navio saiu hoje cheio de gente. Da minha rua foi um. Ninguém fez nada não. Foi
por causa da greve.
Seu Lucas não disse
nada e o homem se foi. O feiticeiro sentiu uma cousa de fora entrando dentro
dele. Era bem diferente da entrada de Deus em seu corpo. Era uma coisa que
nunca tinha sentido em sua vida. Tinha sofrido muito neste mundo de Deus.
Prisões, cadeia, mas tudo ele agüentava com fé, agüentava sabendo que era bom
para ele sofrer. Agora não. Uma coisa de fora mexia com o negro velho. O sol
queimava as folhas de suas plantas, as roseiras abriam-se para o sol. Seu Lucas
não via o jardim, a sua cássia-régia gloriosa, as dálias cheias de vida. Não
olhava, não via. Os seus negrinhos iam para Fernando. Num mar navegando, num
mar carregados para o cativeiro. Ficou pensando. Uma coisa esquisita entrava
pelo seu corpo. Que fizeram os negros? Que fizeram Ricardo e Jesuíno? Mataram?
Roubaram? O governo mandara os infelizes pra Fernando.
Seu Lucas ficou assim
até de noite. Era noite de culto, noite de rezar para o seu Deus.
Os cantos das negras,
os passos das negras, no Fundão, tiniam no terreiro com os instrumentos
roncando. Naquela noite o negro velho vestia as suas vestes sagradas sem saber
o que ia fazer. Todos já estavam prontos para os ofícios, para as rezas
familiares. Seu Lucas de lado tirava as rezas. Era o cantar mais triste que um
homem podia tirar de sua garganta. Os negros respondiam no mesmo tom. E foi
crescendo a mágoa e foi subindo a queixa para o céu estrelado do Fundão. O
sapatear dos negros estremecia o chão, os instrumentos acompanhavam as queixas,
os lamentos. E com pouco seu Lucas começou a dizer o que não queria, o que
sentia. As palavras do ritual não eram aquelas que lhe queriam sair da boca.
Deus estava no céu. Ogum no céu com S. Sebastião. Ele queria cantar outra coisa
que não aquilo que ele cantava todas as noites. E os negros na dança iam
ouvindo o que pai Lucas dizia. O mestre falava dos negros que iam pra Fernando.
- Que fizeram eles? Que
fizeram eles?
- Ninguém sabe não.
Que fizeram os negros
que iam pra Fernando? A voz de Lucas vibrava. Todo o seu corpo se estremecia.
- Que fizeram eles que
vão pra Fernando?
E os negros respondiam
misturando a língua da reza deles com as perguntas do sacerdote, de braços
estendidos para o céu.
- Que fizeram eles?
Ninguém sabe não!
E o canto subia, subia
com uma força desesperada. As negras sacudiam os braços para os lados como se
sacudissem para fora do corpo. Os peitos, as carnes se movimentando numa
impetuosidade alucinante. A terra do Fundão estremecia. Pés de doidos, de
furiosos furavam a terra. E seu Lucas com a boca para cima misturando as mágoas
com as suas rezas:
- Que fizeram ele que
vão pra Fernando? Ninguém sabe não!
O sacerdote quebrando o
ritual para deixar escapar a sua dor. Seu Lucas era mais um Deus naquela hora.
Como um homem qualquer ele falava pelos pobres que no mar se perdiam. O canto
dele varava a noite, varava o mundo:
- Que fizeram eles que
vão pra Fernando? Ninguém sabe não!
(O moleque Ricardo,
1935.)
*
Romancista, um dos mais prestigiados escritores regionalistas do País, membro
da Academia Brasileira de Letras.
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