Caderno de fiados
* Por Marco Albertim
Na fila, Abreu Castanha creu-se tão útil quanto a picareta que logo
empunharia nas mãos nuas de calos. Tanto quanto ele, outros operários tinham no
juízo a crença de que dariam conta da cova, da altura da cintura de cada um. De
sua casa, no populoso Pirambu, para o canteiro de obras no Montese, gastara uma
hora. Há muito calejara a sola dos pés em busca de trabalho. Uma vez, na Praça
do Ferreira, depois de não ser aceito no escritório de uma construtora, teve o
chinelo de borracha pisado por uma mocinha; a tira despregou-se da amarra no
solado inferior. Com apenas uma chinela num dos pés, a pequeno-burguesa com um
colar no pescoço, ainda debochara dos a ndrajos de Abreu Castanha. Fixou nela
seus olhos tão duros quanto o calcanhar sem proteção; quis apertar-lhe o
pescoço acima do colar; não teve coragem e sentiu crescer o instinto de
operário rejeitado..
Agora, sem dores nos pés e com duas chinelas, sentindo-se tão petrechado
quanto os outros, podia falar de igual para igual, mesmo para o mais fornido
dos pedreiros. Inda mais porque, mesmo sendo o primeiro dia de trabalho, uma
cantina fora improvisada em frente ao depósito de ferramentas, de mistura ao
birô com uma janela para o lado de fora, por onde eram entregues as carteiras
de trabalho. A cantina, com paredes de tábuas encaliçadas, restos de outra
construção, vendendo pães diversos, café e leite em sacos plásticos. O dono,
junto com sua mulher, dois peregrinos no encalço de canteiros de obras, não se
importando em vender fiado, desde que cada peão firmasse o nome no
caderno de anotações; ao fim de cada quinzena, o pagamento devido. Abreu
Castanha chegara em jejum, e não hesitou em pôr o próprio nome em troca de um
copo com café fumegante, pão crocante inda que sem margarina. O casal de
vendeiros, acostumado ao instinto de responsabilidade do peão, não tinha o
cuidado de fixar na memória o rosto de cada operário. No caderno, até ali,
nunca algum nome se deixara flagrar em pendência.
Abreu Castanha entregou a carteira de trabalho. Às seis horas e trinta,
o último da fila já tinha arregaçado as mangas da camisa desbotada, pálida do
suor de outras lidas. O depósito, também com paredes de tábuas, mas de uma
madeira nova, com cheiro de árvore recém recém-cortada; e na extremidade de
cada um dos quatro cantos, um ventilador cujo sopro não se rendia ao
calor vindo de fora.
As ferramentas foram entregues nos fundos do depósito. Os pedreiros, sem
esconder o rosto vincado de rugas, tinham-nas como troféus, feito despojos
obtidos depois de anos erguendo paredes obedecendo à inteireza da linha
amarrada ao prumo. Receberam linhas de náilon para traçar o caminho das covas
do alicerce. Depois, os peões se puseram entre asparalelas. O trabalho de
escavação começou sem barulho na superfície de terra seca; abaixo, a segunda
camada mostrou-se escura, dura, estorricada sob o calor do sol; a cor escura,
dando a impressão de uma juntura fofa de grãos, soltava um assovio feito voz de
contralto, a cada golpe das picaretas. Logo, não demorou meia hora, da garganta
de ca da peão ouviu-se o gemido fundo, dando conta do esforço com que a terra
era golpeada. Picaretas, o chão soltando gemidos de rendição, grunhidos
abafados dos homens e, por derradeiro, as pás retirando aos punhados a terra
escavada. Tudo em conluio, sob a espreita minuciosa do mestre de obras.
O suor abundante cobriu cada rosto. Abreu Castanha sentiu-o pesado e, a
modo de se ver livre da água porosa nas bochechas, na testa e até nos braços,
atirando-a para a frente ou para o lado, aproveitava para descansar o tronco
àquela altura mais pesado sob a densidade da transpiração. De toda a turma, foi
o único a sentir o queimor na palma das mãos. Seus golpes com a picareta, não
tinham a mesma profundidade dos outros. A cada meio metro de terra despregada
de sua raiz, removia-a para cima; os montes em cima, sob a linha do náilon
instalada pelos pedreiros, eram baixos, comparados aos dos peões de tórax rijo.
Às onze horas, o triângulo de ferro deu conta do intervalo para o
almoço. A peãozada não soltou o suspiro de alívio, tão comum ao fim de cada
jornada. A estridência do triângulo espavoriu o lume do calor sob o
sol. Abreu Castanha, ao contrário dos outros, deu-se por feliz com o aviso de
que podia parar para o almoço. A maioria dos homens trouxera numa única bacia
de marmita, o feijão tropeiro cozinhado no fogão da própria casa. Abreu
Castanha, sem marmita, sem feijão caseiro, comeu do tempero preparado pelo
casal de vendeiros. Outro valor foi acrescido no débito do caderno de fiados.
Lavou as mãos na torneira onde a água para a dosagem da massa de cimento seria
retirada. Quase não as esfregou, com medo de estourar as bolhas nos dedos , na
palma das mãos. Segurou na colher de sopa tendo o cuidado de evitar um corte
com as laterais da colher.
À tarde, as bolhas das mãos estouraram. Não evitou o esgar da
dor no rosto imberbe. Ouvira de outro peão, experiente, que as bolhas, com a
empunhadura continuada no cabo da picareta, secariam e logo seriam calos feito
couraças.
Em casa, dormiu na rede sem ter tempo de pensar nas bolhas. Voltou à
obra, outra vez a pé. Comeu na cantina improvisada e viu crescer,
sem preocupação, seu débito. Antes de dar o primeiro golpe com a
picareta, ouviu do mestre de obras:
- Você aí! Pode passar no escritório e pegar sua carteira. Você não
serve para o serviço.
Voltou para casa com remorsos por não ter informado ao casal de
vendeiros que fora demitido.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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