sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Dois séculos em um dia, hoje

* Por Urariano Mota

Amigos, a Revista Machado de Assis, que divulga traduções de escritores brasileiros no exterior, publica a partir desta quinta-feira um capítulo do nosso romance “O filho renegado de Deus”. Trata-se de uma edição especial para o ano do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt.

O texto, traduzido para o espanhol por Luanda Calado, sob o título de “Dos siglos en un día”, está aqui

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Se os leitores perdoam a cara de pau deste natural de Água Fria, um subúrbio que a classe média põe na periferia do Recife, divulgo o original em português de um trecho do capítulo do romance, publicado hoje na revista lançada em Frankfurt.

“Como ele atravessou aquele fim de século, da saída da mãe até a manhã do outro dia?
Lembrava e não sabia como fora possível que a janela do quarto estivesse aberta. E ali, em lugar daquela noite de ontem se abria um céu azul com nuvens pronunciadas, com uma luz e alegria que faziam um despudor. Um céu de escândalo de alegria, um céu que deixava em quem o visse uma realização de felicidade. Então ele vira, não sabia se por aquele homem familiar, de imagem de repouso, não sabia se por aquele vulto havia sido acordado, ou se ele aparecera depois, para melhor compor no quadro da janela a pintura do céu, aquele paraíso prometido a todos os padecentes do mundo.

Então ele viu o rosto que lembrava Maria na pessoa do tio Maciel, uma cabeça de Maria sem a sua cabeleira e ternura, o irmão gêmeo e confidente da mãe, tão longe nos últimos dias e tão perto agora, a compor como um anjo bom o quadro do céu na janela. Ele, Maciel, o fitava, ele, Maciel, o observava sem rir e nem sorrir, diferente do que seria de esperar naquela hora, naquela manhã. Mas que importava? O menino, à semelhança de todos adultos que aguardam a chegada do trem, aquele trem que leva a Istambul, de Água Fria para a Turquia, o menino, à semelhança de todos adultos que esperam essa maravilha do conhecimento, não queria notar o grave na face do condutor ou o estado do vagão. O trem chegou! Tio Maciel está na janela. E para a altura do rosto semelhante a Maria, Jimeralto pergunta:
- Meu irmãozinho nasceu?

Jimeralto não soube depois se a crueldade é uma coisa buscada pela vítima, ou se a crueldade está em primeiro lugar na vítima, que atrai o desencanto, a dor sem remédio, ao alimentar em si uma louca e infundada esperança. Quando ouviu “meu irmãozinho nasceu”, no mesmo tom com que Jimeralto perguntava à mãe, “a senhora comprou o boneco Benedito”, o preto danado de beiço grosso que falava a cantar e jogar léria, ao ouvir aquilo o rosto de Maciel não se moveu.
- Ele chegou?

E diante do silêncio do tio, o menino Jimeralto perguntou mais claro:
- O meu irmãozinho já nasceu?

O rosto de Maciel pálido, por falta natural de cor ou de fuga de cor naquele instante, deu a resposta:
- A sua mãe morreu.
- O quê?
- A sua mãe morreu.

Como era dura aquela gente de Maria! Até os mais delicados, até os de natureza mais feminina eram bárbaros. Tio Maciel, com aquele rostinho de educação santa, ousava responder à nebulosa esperança do menino, falar àquela nuvem liquida, aquosa, que se formava agora a deixar o céu azul embaçado, o ex-céu azul no vidro embaçado do trem para Istambul:
- A sua mãe morreu.
- Mentira! O senhor está mentindo!

O rosto de Maciel não se moveu nem saiu do lugar em que empanava a janela do trem para Istambul. Ali naquela janela o rosto de anjo evitava o azul do céu, o luminoso dia visto até mesmo no beco. E por isso os olhos do menino, porque não viam mais o azul, queriam pelo menos enxugar aquela tempestade líquida que vinha, insidiosa, no raso da vista:
- O senhor está mentindo.
- É verdade, sua mãe morreu.

Ali no instante daquele século a infância de Jimeralto partiu. Ali naquele instante, em um minuto do tamanho de um século, a infância acabou. A realidade era a mentira para o coração. Os bens nobres, o valor da essência, o leite dos peitos, o carinho, os dedos de mágico ourives em um toque nos cabelos, a palavra na voz mais quente, a compreensão infinita para a natureza do menino, sumiram. Viravam o rosto do anjo expulso na janela:
- A sua mãe morreu, Jimeralto.

Por que não disse “a minha irmã faleceu”? Ou, já que falava para um menino que tendia para a crença da resolução maravilhosa, por que não disse, “vê aquele céu, Jimeralto, vê? Maria foi para aquela nuvem”.
- Onde, tio?
- Ali, para aquele azul. Maria virou azul”.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


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