* Por Daniel Santos
Seis da tarde, tudo fazia sentido para mim.
O rádio da vizinha tocava a “Ave Maria”, de Gouneaud, enquanto as tanajuras esvoaçavam aflitas em meio à gula das andorinhas e eu, já aos seis anos, intuía que tudo, a despeito da sua eventual grandeza e maravilha, pode finar-se, assim, num átimo, sem revolta nem defesa.
O mundo da minha infância era frágil, perecível demais. Por isso, talvez, me agarrasse à saia de minha mãe com dedinhos de urgência: queria seu colo. Porque, livre de qualquer contato com a chã realidade, ganhava uma estatura de quem se coloca muito acima dos desígnios e, enquanto ela mexia na panela com a colher de pau, aprendia que os ingredientes todos se diluem e se misturam: basta perseverar. O resto é tempero.
Às vezes, mamãe acedia a meus resmungos e me sustentava com um dos braços, enquanto preparava a janta com o outro, e eu podia observar pelo basculante da cozinha que a noite chegava sorrateira pelos fundos do quintal, por entre as folhas de taioba e caninha-do-brejo.
Vagarosa e sem parar nunca, a escuridão progredia mas, antes de tocar a casa, minha mãe batia-lhe a porta e acendia a luz: estávamos todos salvos – eu entendia, então, com grande alívio.
Depois, o milagre. Com se fosse comum, ela destampava a panela e, junto com o aroma de certa forma religioso, saíam estrelas, grilos, sapos, a lua inteira – todo o necessário para a noite vigorar plena!
Jantávamos, então, na santa paz e, depois, quando tomávamos café na meia-luz do alpendre, ela me deixava enfiar a mão no bolso do seu avental, de onde saltavam mais estrelas e meteoros e os meios-tons que infundem mistério a essa hora em que a eternidade parece ainda maior.
Tudo cintilava, então, acima da minha testa, mas logo pesava em meus olhos e eu ronronava na iminência de dormir. Já na cama, enquanto estendia o lençol sobre mim, ouvia minha mãe sussurrar “dorme bem, filhinho”.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Acaba de me matar de saudades, pois com sua descrição da infância, traz de volta a meninice de todos nós.
ResponderExcluirDestaco:"destampava a panela e, junto com o aroma de certa forma religioso, saíam estrelas, grilos, sapos, a lua inteira – todo o necessário para a noite vigorar plena!"
Lindo demais!