segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

As lindas noites da minha infância

* Por Daniel Santos

Seis da tarde, tudo fazia sentido para mim.

O rádio da vizinha tocava a “Ave Maria”, de Gouneaud, enquanto as tanajuras esvoaçavam aflitas em meio à gula das andorinhas e eu, já aos seis anos, intuía que tudo, a despeito da sua eventual grandeza e maravilha, pode finar-se, assim, num átimo, sem revolta nem defesa.

O mundo da minha infância era frágil, perecível demais. Por isso, talvez, me agarrasse à saia de minha mãe com dedinhos de urgência: queria seu colo. Porque, livre de qualquer contato com a chã realidade, ganhava uma estatura de quem se coloca muito acima dos desígnios e, enquanto ela mexia na panela com a colher de pau, aprendia que os ingredientes todos se diluem e se misturam: basta perseverar. O resto é tempero.

Às vezes, mamãe acedia a meus resmungos e me sustentava com um dos braços, enquanto preparava a janta com o outro, e eu podia observar pelo basculante da cozinha que a noite chegava sorrateira pelos fundos do quintal, por entre as folhas de taioba e caninha-do-brejo.

Vagarosa e sem parar nunca, a escuridão progredia mas, antes de tocar a casa, minha mãe batia-lhe a porta e acendia a luz: estávamos todos salvos – eu entendia, então, com grande alívio.

Depois, o milagre. Com se fosse comum, ela destampava a panela e, junto com o aroma de certa forma religioso, saíam estrelas, grilos, sapos, a lua inteira – todo o necessário para a noite vigorar plena!

Jantávamos, então, na santa paz e, depois, quando tomávamos café na meia-luz do alpendre, ela me deixava enfiar a mão no bolso do seu avental, de onde saltavam mais estrelas e meteoros e os meios-tons que infundem mistério a essa hora em que a eternidade parece ainda maior.

Tudo cintilava, então, acima da minha testa, mas logo pesava em meus olhos e eu ronronava na iminência de dormir. Já na cama, enquanto estendia o lençol sobre mim, ouvia minha mãe sussurrar “dorme bem, filhinho”.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Acaba de me matar de saudades, pois com sua descrição da infância, traz de volta a meninice de todos nós.
    Destaco:"destampava a panela e, junto com o aroma de certa forma religioso, saíam estrelas, grilos, sapos, a lua inteira – todo o necessário para a noite vigorar plena!"
    Lindo demais!

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