domingo, 20 de janeiro de 2013

Há vagas para anjos-da-guarda

* Por Eduardo Murta

É Tonico tateando como cego na pequenez do quarto simples de conjunto habitacional. Busca os comprimidos de gaveta, porque sabe: virá enxaqueca de novo. Voltara à casa sem um documento sequer. Desprovido de um tostão que fosse. E a cabeça já latejando em resposta a sete doses de gim, três de campari, cinco chopes e um preparado de vinho barato. Remédio, então, eram o sono, o esquecimento e pelo menos meia cartela, sagrada cartela, de analgésicos.

Em alfa, plena madrugada, pensou, então, que não passasse de mero sonho. O relógio marcando 3 horas, sentiu o toque leve ao ombro, seguido daquele aroma típico de noites calmas: um jasmim inundando-lhe até a epiderme da alma. Notou o vulto à beira da cama. Em lugar do espanto, que seria natural, deu-se a calmaria.

A começar por ter sido chamado pelo nome. Foram duas vezes, num jeito sussurrado: Tonico, Tonico... Piscou sonolento, pouco crendo no que via. Uma combinação de luzes que, por certo, eram de outra esfera. Relutou em manter os olhos abertos, quando a voz angelical lhe chamou uma terceira vez. Agora o tom lembrava mães preparando o terreno para contar histórias de fazer dormir.

Por um instante, achou que fosse ainda efeito do álcool. Não lhe escapava a frase de efeito que costumava usar para justificar a necessidade de um trago a mais: 'Vou ali buscar minha cabeça e volto já'. Era a senha, pontuava, para que pudesse se livrar momentaneamente, ou entrar em acordo, com o vozerio que lhe ocupava os ouvidos sem trégua.

Diante daquela figura diáfana, flutuando junto à cama, pensou num pacto com os Céus, se de fato aquilo era anjo. Aceitaria qualquer missão, mas com uma ressalva. A de que o iluminado lhe poupasse daquele turbilhão de sons lhe apontando o que deveria e o que não deveria fazer. Algo mais: um desconto generoso para seus pequenos delitos. Propôs e adormeceu. Manhã seguinte, despertou em sobressalto. Sonhara ou de fato fizera escala numa das estações do purgatório?

Sentiu fome de realidade. E suas mãos buscaram logo o criado-mudo à esquerda. Respirou aliviado, porque, tateando, deu com o maço de cigarros. Conferiu à volta. A TV 14 polegadas em preto e branco, o pôster do clube campeão, as flores artificiais em palidez de abandono, a garrafa de cachaça pela metade. Estava tudo lá. E, lá estando, haveria ele de estar vivo.

Espreguiçou, luz de fim de manhã já devorando as sombras da quitinete. Num passo, estava ao banheiro. Mirou-se ao espelho e lá viu também o papel dobrado, fixado à extremidade. Levava seu nome ao alto. Relutou, foi deixando os dedos se aproximarem como para neutralizar o bote de uma cobra. Agarrou e veio abrindo lentamente. Foi saudado com um 'Bem-vindo à Casa Santa'.

Abaixo estava a identificação de quem deveria procurar. Procurar e proteger. Breno. Sete anos. Alérgico crônico. Asmático. Lunático. Destes cuja distração era cruzar a vizinhança se equilibrando entre muros. Pior: de olhos cerrados. Tonico tomou o ônibus e foi contando os quarteirões. Da janela mesmo viu a cena. Um menino em posição de passarinho escalando os tijolos nus na esquina. Magricela, branquelo, cabelos alvos.

Percebeu que teria trabalho de sobra. Dia seguinte, aportou mais cedo. Largou o cigarro para trás, a que facilitasse a aproximação e não desatasse incômodos. Semanas à frente, achou que suspendendo a bebida pela manhã também ajudaria. E que roupas limpas e perfumadas cairiam melhor para a missão. E um emprego de meio-horário iria bem. Por fim, já estavam trocando segredos. Breno se comportando melhor, até evitando os vôos cegos que tanto amava. Pediu que Tonico ficasse mais perto. Tinha algo a confessar-lhe. Queria falar, para surpresa do homem que lhe ouvia, sobre anjos. E começou assim: 'Não lhe contaram, mas o anjo-da-guarda, o anjo-da-guarda dessa história está exatamente diante de você nesse instante....'


• Jornalista,, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Foi secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja.

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