terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Uma página de Rubem Braga

* Por Evelyne Furtado

Ivo viu a uva. Ele viu a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.

Rubem Braga, será , segundo Millor Fernandes, " um dos cinco melhores escritores brasileiros do futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro de 2009. Braga morreu em 1990.

Em uma frase, com sua marca brilhante, o mestre Millor, aponta, ao meu ver, a injustiça cometida contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como forma de expressão literária.

Um preconceito bobo como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com lirismo e extrema beleza em tom corriqueiro.

Foi grande exatamente por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais adereços.

Conheci Rubem Braga na coleção Para Gostar de Ler, junto com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.

Assim, fui conhecendo Cahoreiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito com Machado), o mar, o menino e o passarinho.

Retorno a Braga, através da observação de Millor. Encontrei A Viajante, que ora transcrevo nesse espaço, pois o texto entre tantos belos me escolheu. Uma página apenas onde se vê o enorme escritor.

A Viajante

"Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.

Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel.

Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você".

Rio, abril de 1952.

* Poetisa e cronista de Natal/RN

Um comentário:

  1. Também fui capturada pelo encantamento que Rubem Braga irradia. Algum dia se verá reparada essa injustiça. Lindas as suas palavras de homenagem, Evelyne.

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