sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Citações que induzem à reflexão

Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita algumas moedas ou um elogio em troca de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente o doce veneno da vaidade no sangue e começa a acreditar que, se conseguir disfarçar essa falta de talento, o sonho da literatura será capaz de garantir um teto sobre sua cabeça, um prato quente no final do dia e aquilo que mais deseja: seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente vai viver mais do que ele. Um escritor está condenado a recordar esse momento, porque, a partir daí, ele está perdido e sua alma já tem um preço”.

É exatamente com este expressivo e polêmico parágrafo – que dá muito o que pensar, principalmente a nós, contaminados por este vírus não letal, mas incurável, que é a Literatura – que Carlos Ruiz Zafón inicia seu instigante romance “O jogo do anjo”, best-seller mundial, com mais de dez milhões de exemplares vendidos apenas na Espanha, lançado no Brasil pela Editora Objetiva, com primorosa tradução de Eliana Aguiar.

Vários escritores que consultei, a propósito dessa afirmação, negam que sentiram essa empolgação quando, pela primeira vez, aceitaram “algumas moedas”, em troca de uma história. Não sei se foram sinceros, mas... Mas admitiram a segunda proposição. Ou seja, que se empolgaram com elogios ao seu talento e que essa “primeira vez” se tornou inesquecível para eles. Ou seja, sentiram “o doce veneno da vaidade” a circular no sangue. Também, óbvio, senti-me assim. E desde quando tive esse sentimento, o “vírus” da Literatura contaminou-me de forma irremediável e minha alma já passou a ter preço. Penhorei-a não a Mefistófeles, conforme Fausto, o personagem de Johann Wolfgang Göethe, fez. Mas o fiz a uma entidade tão implacável quanto a urdida pelo escritor alemão, que sequer sei como nominar.

O livro de Zafón atraiu-me tanto e me causou tamanho fascínio por tratar, basicamente, das peripécias, angústias, anseios, alegrias (poucas) e decepções (incontáveis) de um escritor, no caso o personagem central do enredo, David Martin. A história, que tão habilmente teceu, teria algo de autobiográfico? Não sei. Apenas o próprio autor poderia dizer. Mas sem dúvida, “O jogo do anjo” tem muito da sua experiência pessoal, da sua vivência e dos resultados positivos ou negativos provenientes dos livros que escreveu e que publicou. Certamente seguiu o caminho mais seguro para o potencial sucesso literário. Ou seja, escrever sobre o que se conhece, o que se domina, o que não exige demoradas pesquisas que garantam ao enredo a desejável verossimilhança. E se deu bem.

Para conhecer um pouco mais sobre o que Zafón pensa sobre Literatura, sobre a vida e sobre sucesso ou fracasso, resolvi empreender demorada pesquisa. Como li apenas um dos seus livros, tive que recorrer a resenhas sobre os demais, escritas por vários escritores e jornalistas, a maioria redigida em espanhol, o que me exigiu maior esforço ainda e suscitou-me natural insegurança. Não consegui muita coisa. Não que Zafón não seja claro ao expressar o que pensa, mas em decorrência da escassez de tempo para pesquisar a fundo algo tão complexo.

De qualquer forma, pincei algumas de suas opiniões (não muitas) que partilho com você, atento e fiel leitor. A primeira citação que me chamou a atenção, por motivo óbvio, é a que se refere a esse objeto de desejo de qualquer escritor, tanto para sua produção e (claro) publicação, quanto para seu deleite e, sem dúvida, principalmente para sua instrução. Zafón declarou: “Os livros são espelhos: neles só se vê o que possuímos dentro”. Engraçado, nunca pensei neles nesse aspecto. Refletindo, todavia, a propósito, não tenho como não lhe dar razão.

Ao escrevermos um livro, e não importa se de ficção ou não, expressamos, exclusivamente, por palavras o fruto exclusivo das nossas observações, conhecimentos e opiniões, com o nosso estilo característico de escrever. Ou seja, relatamos somente o que já temos dentro de nós, há muito tempo, talvez escondido em algum substrato da memória, não raro no inconsciente que, em determinado momento emerge para o consciente. Na leitura, ocorre a mesma coisa. Nossa apreciação (ou depreciação) de determinada obra é reflexo do nosso entendimento (ou desentendimento) e da nossa concordância (ou discordância) com o que o autor expressa. O livro é, pois, metaforicamente, de fato um espelho.

Outra citação que me deu o que pensar é esta: “Há poucas razões para se dizer a verdade, mas para mentir, o número é infinito”. “Exagero!”, dirão, certamente furiosos, alguns, jurando por todas as juras que não mentem jamais. Todavia, apenas essa enfática afirmação já é enorme mentira. Mentimos, sim, e muito, e o tempo todo. Nem sempre nos damos conta disso e muitas vezes o fazemos inconscientemente, certos de estarmos dizendo verdades. Mas não estamos. Boa parte dos relacionamentos – quer afetivos, quer sociais – é baseada na mentira. Ou, o que é mais grave, na meia verdade, que é muito pior, porquanto se torna verossímil, mesmo sendo rigorosamente falsa.

Pertinente e verdadeira é esta recomendação que Zafón faz: “Jamais desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem ser águas curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores palavras que o coração pode falar”. Li observações com o mesmo teor, a propósito, no romance “Eurico, o presbítero”, de Alexandre Herculano e em um memorável sermão do padre Antônio Vieira, a propósito de lágrimas. Ademais, não choramos, apenas, de tristeza. O choro de alegria é muito mais intenso, enfático e, sobretudo, benéfico.

Muitas vezes (diria quase sempre), ficamos impressionados com as distorções e aberrações que o noticiário dos meios de comunicação nos traz, diariamente, ao recesso do nosso lar. E somos tentados a generalizar, a achar que o mundo é um valhacouto de canalhas, habitado “só” por tarados, por violentos, por corruptos, por assassinos em potencial, por exploradores etc.etc.etc. e que não tem mais conserto. Cometemos, com isso, terrível injustiça para com os que constroem, com os que socorrem, com os que aliviam sofrimentos, com o médico competente e aplicado, com o gari esforçado, com o professor, o caminhoneiro, o comerciante, o jardineiro, o pesquisador, o feirante, o ator, o operário, o engenheiro, o músico, o jornalista, a enfermeira, o físico, o pedreiro etc. Não reconhecemos a atuação desses profissionais (não importa o status de que gozem), cuja presença quase nunca é notada, tamanha a assiduidade da sua ação, mas sem os quais a vida se tornaria difícil, senão impossível.

A esse propósito, porém, Zafón constata: “Não há dúvida que há gente no mundo que existe para que haja de tudo”. Há milhões, possivelmente bilhões de pessoas Planeta afora que não apenas facilitam a vida e a tornam agradável e boa, mas asseguram, até, a própria sobrevivência da espécie, com suas ações positivas, competentes e construtivas. Estas, porém, infelizmente, merecem pouquíssima atenção dos meios de comunicação, de nós, escritores, supostamente cronistas da realidade do nosso tempo e, principalmente, do público em geral.

Poderia comentar, ainda, muitas das opiniões de Zafón, mas para não maçá-lo ainda mais, paciente leitor, não o farei. Creio, todavia, que as parcas citações que trouxe à baila são suficientes para comprovar que se trata de um escritor que não apenas nos proporciona algumas agradáveis horas de sadio lazer, com seus excelentes enredos, porém, sobretudo, nos induz à sempre saudável e indispensável reflexão, pelo fato de seus livros terem conteúdo (nem todos romances têm).

Boa leitura.

O Editor.

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