quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Vitória apenas parcial de Eros

O saudoso psicanalista, escritor e poeta mineiro, Hélio Pellegrino, fez, em certa ocasião, em uma de suas tantas e brilhantes crônicas – mais especificamente na intitulada “Apologia da dor de dente”, publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, em 26 de junho de 1983 – uma inquietante constatação, que dá muito que pensar: “A vida é, afinal, luta renhida entre Eros e Tanatos. O padecimento do corpo é um berro de Eros, contra as vilanias de Tanatos”. E o que isso significa? Quem tem (mesmo que mínima) noção de mitologia, ou de psicanálise, entendeu de imediato o teor dessa declaração.

Eros e Tanatos são, figurativamente, os dois instintos básicos do homem (e, ademais, os de todos os seres vivos). O primeiro é o de autopreservação individual e, por conseqüência, da espécie (principalmente desta), papel que só é cumprido mediante a reprodução. Já o segundo é o de destruição – própria e/ou de um suposto concorrente por aquilo que nos assegure a sobrevivência: a fonte de alimentos, a parceira, ou parceiras com a qual (ou as quais) possamos cumprir nossa função reprodutiva e assegurar que nossos genes sobrevivam, mesmo que parcialmente, já que partilhados com o par feminino (ou masculino, claro, no caso de se tratar de mulher) etc. Sua função é a de eliminar o indivíduo, após cumprido seu papel, para evitar superpopulação.

Claro que essa explicação é rudimentar e não entra em detalhes, que, aliás, nem vêm ao caso nesta descompromissada reflexão. Basta saber que Eros e Tanatos são duas figuras mitológicas utilizadas para simbolizar esses instintos básicos dos animais (e claro, os nossos) em permanente luta entre eles. Individualmente, a vitória sempre acaba sendo a da segunda entidade, a da destruição, representada pela morte. Todo ser vivo, evidentemente, um dia morre. Não levanto aqui a questão religiosa (afinal, não sou teólogo) sobre se a extinção humana é definitiva ou se a sua essência, que chamam de “alma”, sobrevive em algum lugar, mantendo a característica fundamental do homem a que pertence, ou seja, sua personalidade, sendo premiada ou castigada conforme seu comportamento no mundo dos vivos.

Para assegurar a sobrevivência física, todo animal, sem exceção, suprime a vida de algum outro, não importa qual (se for carnívoro), ou de algum vegetal, que também é ser vivo (caso seja hervíboro). Não existe nenhuma outra forma de assegurar a sobrevivência. A natureza, nesse aspecto, portanto é crudelíssima. Não conheço nenhuma espécie que se alimente exclusivamente de minerais. Estes podem até entrar na dieta (e entram), mas de forma apenas suplementar. Todavia é regra que a vida só se alimenta de vida.

Todavia, o escritor sul-africano Stuart Cloete, em seu livro “Balada africana” (Tradução de Raul de Polillo, Boa Leitura Editora), nos chama a atenção para o maior predador da natureza. E este, óbvio, somos nós, humanos. O romancista escreve: “O maior de todos os parasitas é o homem que vive de todas as coisas vivas. Das coisas que crescem; das coisas que correm; das coisas que voam; e das coisas que nadam. O homem consome-as todas. Consome os seus próprios semelhantes na guerra; mas não sabe disso. Porque não são apenas os canibais que comem os corpos de homens. Outros homens lhes bebem o suor; bebem-lhes o sangue, que é a vida do homem. E devoram-lhes o tempo – de modo que eles não têm tempo para pensar, que é a função do homem; isto faz com que os homens corram e se esfalfem o dia todo, e o façam também durante a noite – mas nunca tratem de seus próprios assuntos, engajados que estão a serviço e para lucro de outro. E estes são os homens que denominamos civilizados – estes consumidores de homens – e os homens que permitem que os outros os consumam”.

Por trágica, horrenda e pessimista que a constatação pareça (e seja), é a pura expressão da verdade. Aliás, é a lógica, o óbvio, e até “ululante”, como certamente Nelson Rodrigues o classificaria. Somos, sem dúvida alguma, os maiores predadores da natureza. Somos os seres mais sanguinários e cruéis que já habitaram o Planeta, muito piores do que dinossauros e outras tantas gigantescas bestas que eventualmente tenham existido e desaparecido para sempre, por algum motivo. E isso incomoda? A alguns (mais sensíveis e piedosos), certamente, sim. À imensa maioria, no entanto, não causa o menor incômodo ou constrangimento. Tais pessoas sequer pensam nisso. Contudo, é algo que, mesmo que se quisesse ou se queira, não pode ser mudado. É instintivo. É regra básica e fundamental da natureza. Sempre foi e sempre será dessa forma Não há alternativa.

O escritor José de Alencar, contudo, apresenta, no romance “A pata da gazela”, o outro lado da moeda. Ou seja, somos, simultaneamente, predadores e presas. E os que nos “apresam”, pitorescamente, não são seres maiores, mais fortes e mais inteligentes do que nós. Pelo contrário, são tão minúsculos a ponto de serem invisíveis a olho nu. São os vírus e bactérias, que se valem do nosso organismo para sobreviver e que nos provocam doenças, que a Medicina luta incansavelmente para exterminar. Todavia, a cada cura obtida sobrevêm dezenas, centenas, quiçá milhares ou sabe-se lá quantas novas moléstias a realizarem a tarefa de Tanatos: ou seja, a de nos eliminar.

José de Alencar escreveu a propósito: “O que somos nós afinal de contas? Uma presa; enquanto vivos, a presa das moléstias e das paixões próprias ou alheias; depois de mortos, a presa dos vermes ou das chamas”. Estas reflexões (tanto do romancista, quanto, e principalmente, minhas) podem parecer, aos desavisados, sumamente pessimistas, mas não são. São a mais lídima, evidente e óbvia expressão da realidade a que sequer nos damos conta. A vida é assim, pelo menos no plano físico. E não há quem, e nem há forma, disso eventualmente mudar.

Com tudo isso, com toda essa crueldade inerente à lei maior da natureza, Tanatos, no que se refere à nossa espécie e não a algum indivíduo em particular, pelo menos por enquanto, vem perdendo a batalha para Eros. A humanidade se multiplica em progressão geométrica, enquanto a multiplicação de recursos para sustentá-la apresenta crescimento em progressão apenas aritmética, dando razão a Robert Malthus que previa que, ao cabo do processo, ocorreria inevitavelmente a falta do básico, do essencial para sustentar a vida humana: o alimento.

Os que contestaram sua teoria e até a ridicularizaram apresentaram o argumento da evolução das técnicas agrícolas e de criação de animais, que forneceriam recursos infinitos ao homem, nesse aspecto. Estes, todavia, não teriam limites? A mínima lógica diz que sim. E nessa equação sequer entram os fatores do egoísmo, das injustiças etc. que, em todos os tempos (e os atuais não são exceção) produziram e produzem milhões, quiçá bilhões de famintos, em um mundo no qual (pelo menos atualmente) abundam alimentos. A superpopulação é, e será cada vez mais, a grande armadilha da humanidade, o maior risco potencial da extinção da espécie. É, pois, Tanatos, aparentemente vencido, usando a parcial vitória de Eros como arma para vencer a batalha final. Certamente voltarei ao assunto, oportunamente, enfocando novos ângulos da questão.

Boa leitura.

O Editor.

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