quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pastelão de sangue

* Por Fernando Yanmar Narciso

Numa roda de amigos, dizem que ninguém fala mais que o diretor Quentin Tarantino. Portador de TDAH, matraqueia tanto que parece que tem bocas até nas axilas. Tudo na vida dele gira em torno do cinema. Conhece mais filmes, de todos os gêneros possíveis e imagináveis, que a matriz da Blockbuster. Um dos poucos cineastas modernos com aquela mentalidade dos pioneiros da indústria, construiu uma reputação e estilo próprios logo de cara. Sexo, violência, sangue, malandragem, senso de humor mórbido e inesperado e referências à cultura pop a cada 15 segundos são fatores que podem ser observados em sua filmografia desde seu 1º filme, Cães de Aluguel, de 1992.

Pulp Fiction, sua obra posterior, é considerado um dos melhores filmes já feitos por muitos críticos especializados, eu incluso. Mas, após Kill Bill, um dos filmes mais sanguinolentos e rasos de todos os tempos, apesar de cool, ele parece estar tentando fazer trabalhos mais coerentes e profundos. Bastardos Inglórios, sua fábula passada na 2ª Guerra Mundial onde ele literalmente fuzila Hitler e todo o alto escalão nazista, mostrou um Q.T mais maduro e desacelerado e, para variar, com mais algumas indicações ao Oscar.

E hoje, aos 50 anos, quem pensava que o sem-vergonha tinha sido, enfim, domado, teve de meter os pés pelas mãos! Eis que o maluco do Tennessee retorna com a eulogia definitiva de seu gênero cinematográfico favorito: O faroeste italiano trash.

Até quem nunca viu um faroeste já deve ter ouvido o nome Django. Criado por Sergio Corbucci e imortalizado pelo supercanastrão Franco Nero em 1966, o pistoleiro sobrenatural arrastador de caixões inaugurou a carnificina no terreno de John Wayne e foi ressuscitado por Q.T de uma maneira no mínimo inusitada em Django Livre, do ano passado.

Estamos a alguns anos do início da Guerra Civil americana, evento que ajudou a abolir a escravidão no país. Logo, os negros ainda são comercializados e tratados como lixo por 90% da população. King Schultz (Christoph Waltz, o novo ator-fetiche de Tarantino), um ex-dentista alemão que agora exerce a profissão de caçador de recompensas, aborda na calada da noite um grupo de mercadores negreiros, à procura de um escravo para comprar sua liberdade. Mas não de um escravo qualquer, e sim um capaz de rastrear três bandidos que ele procura, e eis que Django (Jamie Foxx) cai em seu colo. Após uma negociação nada amistosa e regada a sangue e vísceras como só o diretor sabe conduzir, Django conta que os tais bandidos foram responsáveis por torturar a ele e Broomhilda, sua esposa, e separá-los no passado. Logo, ele é capaz de fazer qualquer coisa para encontrá-la e se vingar de seus algozes e de quem mais cruzar seu caminho. Assim, após um mais que merecido banho de loja, o escravo liberto torna-se o parceiro e amigo de Schultz em seu negócio mortífero, em que ele realiza a fantasia que, creio eu, todos os negros daquela época devessem ter: Atirar na fuça de um monte de brancos. Aí a gente se pergunta por que o diretor bundão Spike Lee afirmou que boicotaria o filme. Ele tem todos os ingredientes que o cara aprecia: Linguagem chula, luta de classes, a vitória do negro sobre o branco...

Após alguns meses e muitos tiros, os dois enfim descobrem o paradeiro de Broomhilda: Ela ainda é mantida como escrava por Calvin Candie (Leonardo Di Caprio), um tresloucado e cruel negociador de escravos sulista, os quais ele tem o hábito de colocar em rinhas mortais em sua sala de estar, como se estivesse vendo MMA na televisão. Assim, os dois tentam se infiltrar na plantation dele para resgatá-la, com consequências desastrosas. Obviamente Calvin é o alter-ego de Tarantino, pois ele não para de falar por um único segundo e tem o temperamento de um fio desencapado.

Hoje é sabido que o velho oeste não era necessariamente aquela terra de ninguém que Hollywood sempre nos ensinou. Claro que havia seus bandidos e seus crimes, mas não com todo aquele exagero imortalizado por John Wayne e os outros xerifes engomadinhos. Mas, como falamos de um filme de Tarantino, obviamente esse detalhe foi ignorado. A violência mais parece uma sobra do Vietnã. São balas voando para todos os lados, corpos em abundância e muito sangue falso. Aqui ele jorra como se fosse para apagar um incêndio, a tela é simplesmente pintada de vermelho nas sequências finais, como não se via no gênero desde os faroestes revisionistas de Sam Peckinpah. Quase dá pra sentir toda a dor e o terror causados pelas Colts 45 e pelas espingardas Winchester. Porém, antes de nausear todo mundo, o diretor sempre dá um jeito de encaixar uma piadinha canalha ou um acontecimento involuntariamente hilário, para nosso coração voltar a bater. Você sabe que vai se odiar por rir daquelas cenas, mas não consegue resistir. Assim é Q.T.


*Designer e escritor. Site: HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br

Um comentário:

  1. Muito bem articulado, com argumentação impecável, bom conhecimento de causa, além de leves toques de humor, sobre os quais você é PhD. Achei excelente, embora com frases longas.

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