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Incendeiem as esperanças em Gabriela
* Por Eduardo Murta
Vista assim, num relance, Gabriela lembraria o perfil típico feminino. Enxergava a mão do destino em qualquer casualidade – num papel de bala, num convite para o cinema, num sorriso mais generoso do colega de escritório. Como houvesse vindo ao mundo para sonhar. Até que o choque de realidade fosse quebrando seu ar de ingenuidade e lhe emprestasse, no mesmo peso, atmosfera de desconfiança. Agora se convertera em mulher decididamente dividida. A ponto de renunciar à velha fraqueza de copiar ponto a ponto os modelitos das estrelas de novelas. Se exibia nos vestidinhos em versões mais – ou menos – comportadas, adotara o cabeleireiro como divã uma vez ao mês. E, exagero, chegara a assumir a personalidade de algumas personagens. Sacava frases inteiras de um determinado enredo, e só ao final percebia os labirintos em que se metera.
Andava um tanto cansada daquilo. E pensava exatamente numa guinada naquela manhã de Parque JK, sob as franjas da Serra do Curral. O cenário lhe parecia apropriado. Céu de brigadeiro, como amava, e o vento já derivando para as correntes de inverno. Não sabia o por quê, mas era dia em que o contentamento lhe brotava de uma maneira que quase poderia tocá-lo. Daí vislumbrou bom sinal no livro repousando ao banco. Feito a esperasse.
A capa num laranja-alegria: “Dez maneiras de tornar seu sonho possível”. Abriu, esbarrou no bilhete que sugeria o retorno a um parque público depois da leitura, a que a obra fosse partilhada. Comprou a idéia. Ali mesmo começou a correr os olhos sobre os textos. Tinham estilo de manuais para náufragos e uma certa dose de pieguice que, no fundo, não a incomodavam.
O primeiro capítulo já dava conta dessa inclinação: “A felicidade está dentro de você”. Viu identidade brejeira naquilo, que se emocionou, fez uma prece em agradecimento e prosseguiu. Foi degustando as palavras ao estilo de provadores de vinhos nobres. Se embebedando numa alegria infantil, como há muito não sentia.
No capítulo seguinte, outra pérola do lugar-comum e nenhum desconcerto em Gabriela, porque talvez estivesse procurando exatamente aquilo: “Basta crer, e tudo se realizará”. Mergulhou nas frases de efeito, enquanto se deleitava com a miragem de alcançar os desafios que se impusera – emprego bem remunerado em embaixada na Europa, marido belo, rico e carinhoso, e reconhecimento da crítica a suas aquarelas de oitava categoria.
O calor apertando, ela desejou que o sorveteiro migrasse do outro lado da praça para perto dali. E pouco acreditou. Num instantâneo, veio de lá cruzando em direção a ela e, sem que a conhecesse, estendeu-lhe o picolé de uva, seu preferido. Seria mero delírio, não estivesse vendo a meninada correndo, soltando papagaio, em bicicleta e um mundo de gente se exercitando.
Era mesmo verdade. E daí dividiu-se marcadamente no perfil ingênua-desconfiada quando o estranho, figura em estilo galã, porte atlético, olhos num verde transbordando, se avizinhou. Vieram um bom dia educado, um sorriso impecável, de virar cabeças. O homem logo mencionou literatura, para familiarizar a conversa. Gabriela deixou que falasse. Diplomata, poliglota, viajado. E caído por tipos como ela. Um certo desarranjo a fez abraçar-se ao livro, ao mesmo tempo em que passava a crer, mais e mais, no poder de transformação daquela obra.
Ganhou confiança. Deslizou para perto do estranho. Sentiu as respirações se acelerando, os rostos procurando um encaixe. E veio beijo que sugeria se conhecerem fazia anos. Num instante já mencionavam filhos, residência europeia, passeios continentais. Ela suspirando, que o contorno dos seios chegava a arquejar. Ah, como sonhara com aquilo. Finalmente se acertara com a vida.
E recostou-se, confortada, ele já retornando com a água de coco, a que celebrassem. Gabriela aproximou o livro do colo, percebeu as folhas subitamente ficando mornas. Quentes. Viu desprender-se uma fumaça leve, um fogo brando, as páginas logo fazendo cinza em suas mãos. E o resto à volta derretendo, se desintegrando. Como tigres de papel em tardes de tempestade.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
* Por Eduardo Murta
Vista assim, num relance, Gabriela lembraria o perfil típico feminino. Enxergava a mão do destino em qualquer casualidade – num papel de bala, num convite para o cinema, num sorriso mais generoso do colega de escritório. Como houvesse vindo ao mundo para sonhar. Até que o choque de realidade fosse quebrando seu ar de ingenuidade e lhe emprestasse, no mesmo peso, atmosfera de desconfiança. Agora se convertera em mulher decididamente dividida. A ponto de renunciar à velha fraqueza de copiar ponto a ponto os modelitos das estrelas de novelas. Se exibia nos vestidinhos em versões mais – ou menos – comportadas, adotara o cabeleireiro como divã uma vez ao mês. E, exagero, chegara a assumir a personalidade de algumas personagens. Sacava frases inteiras de um determinado enredo, e só ao final percebia os labirintos em que se metera.
Andava um tanto cansada daquilo. E pensava exatamente numa guinada naquela manhã de Parque JK, sob as franjas da Serra do Curral. O cenário lhe parecia apropriado. Céu de brigadeiro, como amava, e o vento já derivando para as correntes de inverno. Não sabia o por quê, mas era dia em que o contentamento lhe brotava de uma maneira que quase poderia tocá-lo. Daí vislumbrou bom sinal no livro repousando ao banco. Feito a esperasse.
A capa num laranja-alegria: “Dez maneiras de tornar seu sonho possível”. Abriu, esbarrou no bilhete que sugeria o retorno a um parque público depois da leitura, a que a obra fosse partilhada. Comprou a idéia. Ali mesmo começou a correr os olhos sobre os textos. Tinham estilo de manuais para náufragos e uma certa dose de pieguice que, no fundo, não a incomodavam.
O primeiro capítulo já dava conta dessa inclinação: “A felicidade está dentro de você”. Viu identidade brejeira naquilo, que se emocionou, fez uma prece em agradecimento e prosseguiu. Foi degustando as palavras ao estilo de provadores de vinhos nobres. Se embebedando numa alegria infantil, como há muito não sentia.
No capítulo seguinte, outra pérola do lugar-comum e nenhum desconcerto em Gabriela, porque talvez estivesse procurando exatamente aquilo: “Basta crer, e tudo se realizará”. Mergulhou nas frases de efeito, enquanto se deleitava com a miragem de alcançar os desafios que se impusera – emprego bem remunerado em embaixada na Europa, marido belo, rico e carinhoso, e reconhecimento da crítica a suas aquarelas de oitava categoria.
O calor apertando, ela desejou que o sorveteiro migrasse do outro lado da praça para perto dali. E pouco acreditou. Num instantâneo, veio de lá cruzando em direção a ela e, sem que a conhecesse, estendeu-lhe o picolé de uva, seu preferido. Seria mero delírio, não estivesse vendo a meninada correndo, soltando papagaio, em bicicleta e um mundo de gente se exercitando.
Era mesmo verdade. E daí dividiu-se marcadamente no perfil ingênua-desconfiada quando o estranho, figura em estilo galã, porte atlético, olhos num verde transbordando, se avizinhou. Vieram um bom dia educado, um sorriso impecável, de virar cabeças. O homem logo mencionou literatura, para familiarizar a conversa. Gabriela deixou que falasse. Diplomata, poliglota, viajado. E caído por tipos como ela. Um certo desarranjo a fez abraçar-se ao livro, ao mesmo tempo em que passava a crer, mais e mais, no poder de transformação daquela obra.
Ganhou confiança. Deslizou para perto do estranho. Sentiu as respirações se acelerando, os rostos procurando um encaixe. E veio beijo que sugeria se conhecerem fazia anos. Num instante já mencionavam filhos, residência europeia, passeios continentais. Ela suspirando, que o contorno dos seios chegava a arquejar. Ah, como sonhara com aquilo. Finalmente se acertara com a vida.
E recostou-se, confortada, ele já retornando com a água de coco, a que celebrassem. Gabriela aproximou o livro do colo, percebeu as folhas subitamente ficando mornas. Quentes. Viu desprender-se uma fumaça leve, um fogo brando, as páginas logo fazendo cinza em suas mãos. E o resto à volta derretendo, se desintegrando. Como tigres de papel em tardes de tempestade.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
A idéia de encontrar um livro em banco de
ResponderExcluirpraça com o intuito de ser compartilhado
é maravilhoso. Eu adoraria.
Ver meus desejos realizados, nem se fala.
Mas não sou romântica o bastante para me deixar
trair dessa forma. Mas é gostoso sonhar.
Os sonhos são o recheio da vida.
Belo texto Murta.
Abraços
Algumas vezes o livro não se desintegra e sim a própria história. O amor se desfaz, o azul se torna cinza, e o sonho transforma-se em catástrofe.
ResponderExcluirDestaco: " E daí dividiu-se marcadamente no perfil ingênua-desconfiada"...
Tão perfeito quanto um romance que dá certo.