domingo, 23 de maio de 2010




Pastelão

* Por Cecília Gianetti


“No Brasil quem tem ética parece anormal” – Mário Covas, em 1989.

Mente quem diz que ando obcecada por Gore Vidal. Sou obcecada por Gore Vidal desde criancinha, o que me valeu traumas profundos e apelidos - "Maria Capitólio" et al - entre os meus coleguinhas de colégio, que preferiam o João Ubaldo Ribeiro. Este não fez feio no último domingo, ao demonstrar em sua coluna que não se encontra em coma (http://oglobo.globo.com/jornal/colunas/ubaldo.asp). Mas confesso: tirando artigos que atiram com mais de uma dezena de adjetivos contra nosso governo e asseclas, é cansativo ler sobre as mesmas intrigas e o modus operandi de hillbillies que põe boa parte dos escribas a repetirem sua indignação morna a cada decepção.

Por isso, de volta ao Gore Vidal. Eu lia aqueles seus novelões ambientados em Washington D.C. e sonhava escrever histórias de amor e política suja tão palpitantes quanto o Império (http://www.amazon.com/gp/product/037570874X/104-7575282-43923?v=glance&n=283155). Mas aí eu comecei a ler os nossos jornais e revistas. Através deles, percebi que a matéria prima oferecida pela vida política brasileira era deselegante demais para se transformar em “Império”. Duvida? Três palavrinhas pra você: "Anões do Orçamento" ("do" é uma palavra, não é?). Duvida ainda, eleitorado? "Mensalão". E, com as mais recentes trapalhadas, elas até parecem coisa distante e esquecida, não? Esta é a nossa sina.

Pastelão rima com anão e mensalão. É ao pastelão que dedico esta meditação e suas rimas pobres-diabas. Com o tipo de matéria-prima que nosso cenário político oferece, só se pode escrever pastelão. Jamais um novela à Gore Vidal.

***

(Agora, leitor(a), o negócio aqui vai ser comprido. É por isso que eu chamo de stand-up comedy sentado).


***

PASTELÃO (ou o Departamento de Dignidade Nacional)!!!
Uma historinha de espionagem, 'mediundidade' e adjetivação politicamente incorreta

Ontem mesmo eu estava ocupada em minha prática diária de Kaymmi Yoga quando o telefone tocou. Era um burocrata. Pressenti e fiquei quietinha esperando o ruído parar. Mas meu tio, que jogou no Vasco e diz ser mediúndico, achou importante me passar a ligação.

(A prática da Kaymmi Yoga ainda não se espalhou pelo mundo – chegou e se instalou no Rio de Janeiro, sem conseguir avançar até São Paulo. Quando atingir os outros continentes, não haverá mais guerra. Aliás, não haverá mais nada. Vai ser mesmo como o mundo imaginado por Kurt Vonnegut num livro chamado Pastelão - Ou Solitário Nunca Mais (http://www.amazon.com/gp/product/0385334230/qid=1143205539/sr=1-1/ref=sr_1_1/104-7575282-1743923?s=books&v=glance&n=283155), em que a força da gravidade torna-se tão forte que o povo vive deitado. Quando digo que esses gringos copiam a nossa gloriosa cultura, não estou de molecagem).

Enfim, atendi à ligação do burocrata.

- Boa tarde, senhora.

- ...

- Meu nome é Oficial...

- RÁ. RÁ.

- ... ? ... José Ferreira, do Serviço de Inteligência Brasileiro...

- KKKKKKKKKK!!! (Risos a la Orkut de guri).

- Senhora? Alô?

- Shshshshshsh... (Risos sreprimidos).

- ... do Departamento de Dignidade Nacional...

- GAH!!! KKKKKKKKKK!!! Ufa... fffffiu! (Quase desacato).

- ?!

(A Kaymmi Yoga - quando executada dentro dos conformes da norma mediúndica - viabiliza uma limpeza de canais sensitivos que deixa o riso frouxo).

- Senhor, por etapas: a respeito do Serviço de Inteligência Nacional que o senhor mencionou...

- Pois não.

- O termo "Inteligência Nacional" refere-se mesmo à nação brasileira ou é coisa de filial estrangeira tentando implantar aqui seus execráveis maneirismos ianques?

- Não compreendo, senhora.

- Eu sei.

- Perdão?

- E o Departamento de Dignidade Nacional?

- É um órgão do nosso governo.

- Estou genuinamente fascinada. E o que fiz para merecer um contato telefônico de tão alta patente?

- A senhora...

- Senhorita.

- ...Senhorita é autora de um texto que chegou às mãos... aos olhos de nossos avaliadores culturais. E causou aqui no DDN muita consternação.

- É “mesmo”?

- O texto foi publicado em um uébi-lógui - um diário na Internet - e afirma, entre outras coisas, que nossos políticos são hillbillies. Procuramos no Michaelis Inglês/Português e concluímos que a senhora... srta. chamou nossos políticos de "caipiras".

- Mas de maneira alguma, sr.! Posso me explicar, doutor?

(Doutor é uma das palavras-chave que tranqüilizam as energias agitadas. Há um mantra, no entanto, que surte efeito apenas se utilizado pelos realmente iluminados: "Você sabe com quem está falando?". Não é o caso desta escriba).

- Explica, filha.

- Não utilizei a palavra hillbillies no sentido de "caipiras".

- Não?

- De maneira alguma. Utilizei hillbillies, as in "rastaqüera", "rústico".

- Ok, estou tomando notas.

- Farei o possível para acreditar que possa ouvir e anotar simultaneamente, sr.

- Como?

- Desculpa, ruído de comunicação. Então, tem mais acusações?

- Sim, relacionadas a um desdobramento bastante intrigante derivado da expressão hillbillies, e a um efeito colateral implícito de sua conotação...

- Prossiga, xerife. Estou ofegante de antecipação!!!

- ... que seria: o cenário político brasileiro não pode ser matéria-prima para boa literatura. Não oferece matéria-prima digna. Mal chega a ser política, é algo que não merece nem o "pfff" do povo.

- Onde eu disse isso, Oficial?... Sr. Doutor Oficial?

- A srta. teria afirmado que nunca quis cobrir política no Brasil porque política no Brasil era um negócio de hillbillies metidos em esquemas.

- Sim.

- Nada a declarar em sua defesa?

- Pelo contrário: muita coisa. Coisa pra chuchu. Eu gostaria de lembrar ao sr. de algo importante. Digo "lembrar" porque, a essa altura, sendo membro da Inteligência brasileira e sabendo operar a Internet e um telefone, os senhores aí no DDN certamente detêm valiosas informações acerca do meu passado. Como, por exemplo, que eu cresci com Gore Vidal. Um velho que criava acelgas em uma banheira no final da minha rua faleceu quando eu tinha cinco anos de idade. Ele deixou toda a obra de Gore Vidal para meu tio, que não o conhecia. Como o tio em questão tinha que se dedicar à mediundidade, passando dias a entortar os talheres de casa e a afrouxar os chacras, eu herdei os livros do velho. Mais: eu era feia. Feia de doer. Meus pais me trancavam em casa para que as outras crianças não prendessem um barbante com latas no elástico das minhas saias nem me jogassem de cabeça pra baixo dentro das caçambas da Comlurb. Está satisfeito agora?! Por isso fui educada dentro de casa, sr. Oficial, sou autodidata. Por longos e longos anos existimos apenas eu e Gore Vidal. Mas o sr. já deve ter lido isso em minha biografia, nas informações que certamente foram levantadas pelo - yak yak yak - Serviço de Inteligência Brasileiro.

- Er...

- Afirmo em defesa de meu argumento que roubar e pilhar... ah, isso acontece, sr. Oficial. Têm sido uma prática bastante popular nos últimos milênios. Mas mensalão e desvio de verba de posto de saúde pública, por exemplo, são expedientes de hillbillies metidos em esquemas. Coisinha rastaqüera. Gore Vidal morreria de tédio no Brasil. Primo de Jaqueline Kennedy e amigo de Anais Nïn, jamais escreveria aqui um livro sequer. E eu, enquanto humilde pupila de seus sutis ensinamentos, também não posso tomar da pena (tecla) para digitar um romance histórico com base na política de meu país.

- Mas o Jô Soares fez isso, srta., e ganhou dinheiro.

- Sr. Oficial, não o ofendi. Procure, portanto, manter o nível da conversa.

- Desculpe.

- Vou deixar passar. Mas presta atenção: Gore Vidal ficaria macambúzio no Brasil. Isso aqui é de uma morosidade em que nenhuma teoria conspiratória remotamente instigante pode germinar! Os esquemas, as falcatruas... estão todos absolutamente na nossa cara o tempo todo. Nada há de mirabolante sobre eles. Até a Veja desbarata quadrilhas de anões - quando quer, não carece nem de um Bob Woodward. Tudo previsível: conta na Suíça, paraíso fiscal, caixa-dois e acabou. Que graça teria isso prum homem que freqüentava a casa de uma teoria conspiratória VIVA (naquela época o Kennedy tava vivo, né), do naipe de assassinato de presidente? Ele vivia metido na mansão dos Kennedy, tá entendendo? É a mesma coisa que convidar o Joãosinho Trinta pra fazer as fantasias do teatrinho da escola da tua filha.

- Como você sabe que eu tenho uma filha?!

- Arrá!!!! Talvez o senhor não tenha conhecimento de toda a lista de integrantes do Serviço de Inteligência Nacional.

- ...

- Oficial, alô?

- ... A sra., srta. ...

- Oficial, por favor, eles podem estar gravando esta ligação. Contenha-se.

- Obrigada. E permita-me dizer que a srta. tem uma bela voz.

- Eu sei. Eu era cantora. Antes de me vender como espiã ao Serviço de Inteligência em troca da minha liberdade. Despeço-me aqui.

- Ok.

- Ok.

(Agradeci meu tio mediúndico pela dica sobre a filha e voltei pra Kaymmi Yoga, que Buda nos abençoe!).

* Escritora e jornalista carioca, tem contos publicados em revistas e em antologias das editoras Record, Ediouro e Casa da Palavra. Seu primeiro romance será lançado em 2006 pela Agir. É colaboradora do site NoMínimo [www.nominimo.com.br] e edita a revista eletrônica Bala [www.revistabala.com.br]. Faz stand-up comedy todos os dias no [ www.escrevescreve.blogger.com.br

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