sábado, 29 de maio de 2010




Primitivos rituais

* Por Daniel Santos

Noite dessas perdi o sono e fiquei fumando à janela até tarde, no aconchego de uma escuridão que a tudo envolvia, preservava meu anonimato e me qualificava, assim, como privilegiado observador de ocorrências que escapam desde sempre ao registro da História.

Ventava de maneira incomum para esta época do ano e uma folha de jornal passou como gaivota tablóide de asas retintas, levando para bem longe notícias que haviam encardido a manhã, mas eram já passado: crimes urbanos, genocídios no Iraque ... Ah, não importava mais!

Falava-se ali, na certa, de gente queimada, torturada, humilhada, em cujo sangue banqueteavam-se dráculas republicanos da nova era velha; arcaica, melhor dizendo. Fatos hediondos que, no futuro, tornarão inverossímil o estudo da História, tamanho o acinte, a desfaçatez.

Depois de a folha passar, uma mulher surgiu na clareira e arrumou junto ao meio-fio tigelas, galinhas azeitadas no dendê, velas, garrafas de cachaça, farofa e fitas vermelhas. Rezou, bateu palmas e afinal tragou-a a escuridão. Foi quando um mendigo esfaimado saiu de trás da árvore.

Vinha com o apetite dos milênios e seus dentes de voraz heresia trinchavam os frangos, impunham jejum aos deuses; ao menos, naquela noite. Regalava-se como um dissoluto sem o constrangimento de se saber observado, porque àquela hora os historiadores dormiam..

E comeu tudo até empanzinar-se – para ele, um desconforto gástrico de luxo. Aconchegou-se sob a marquise, envolveu-se no lençol de néon que descia do cartaz luminoso e adormeceu em estado de cordura. Bárbaro sem guerras nem carnificina que nunca sairá nos jornais.

* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

3 comentários:

  1. É sempre um prazer ler os seus
    textos, que bom revê-lo.
    Fazes falta amigo.
    E não somos todos bárbaros? Apenas usamos
    um pouco mais da sutileza.
    Adorei o texto.
    Beijos

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  2. Que bom que você voltou, Daniel. Faço minhas as palavras da nossa doce Núbia.Que prazer ler seus textos, e que imagem bonita essa do jornal que toma a forma de gaivota...
    Abraço

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  3. Muito gostoso esse texto Daniel. Pena que é direto do arquivo, e não uma volta, mas bem que poderia ser. Faço coro a Núbia e Risomar e peço que volte.

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