sábado, 22 de maio de 2010




Umas histórias outras

* Por Anna Lee

A Páscoa e a recente divulgação de um manuscrito com mais de 1700 anos e que levanta a hipótese de que Judas Iscariotes seria não um traidor, mas o apóstolo preferido de Jesus, me levaram de volta à infância.

Sempre preferi a Páscoa ao Natal e isso não tem nada a ver com o fato de eu ser chocólatra incorrigível desde sempre e muito antes de os primeiros sintomas de TPM aparecerem. Nem o coelhinho da Páscoa nem o papai Noel me convenceram por muito tempo de suas existências espectrais e onipresentes dotadas do poder de invadir as casas de uma infinidade de gente sem nunca serem vistos por qualquer criança, por maior que fosse o esforço de permanecer de olhos abertos a noite inteira. Mas gostava da brincadeira de achar os ovos de chocolate que a mãe promovia entre mim e meus irmãos. Coisa que não acontecia no Natal, época em que era – e ainda sou – invadida por tristeza de impossível reparação.

Na Páscoa, também tinha o detalhe de irmos para a casa da avó materna, numa cidadezinha da Zona da Mata mineira, onde o ritual da malhação de Judas era, e deve continuar sendo, uma tradição.

Era uma casa térrea de janelas baixas, separadas da rua por grades que me permitiam sentar no parapeito e deixar as pernas penduradas para o lado de fora. Lugar que eu vigiava desde que acordava para ter prioridade na hora de assistir ao linchamento de Judas, no sábado de Aleluia, véspera do domingo de Páscoa.

Ficava fascinada e ao mesmo tempo apavorada com a catarse coletiva que era o evento. Sem coragem de discordar daquela massa humana, perguntava a mim mesma sobre o que teria feito o tal Judas, ali representado por um boneco de pano, para merecer tamanho castigo. A mesma sensação que senti quando, aos sete anos – já sabendo que Judas Iscariotes traiu o Cristo, denunciando-o aos centuriões romanos que o procuravam para o prender e submeter a julgamento –, me disseram que eu devia colocar a mão sobre o peito e dizer “minha culpa, minha tão grande culpa” e confessar ao padre todos os meus pecados – sendo que eu não sabia tê-los – para ter direito à comunhão.

Passaram-se os anos e agora a National Geographic Society traz a público, pela primeira vez, algumas páginas do Evangelho de Judas, datada dos séculos III ou IV, as quais constituem a única cópia conhecida do documento, cujo original teria sido escrito em grego por um grupo de gnósticos, antes do ano 180. A análise das 26 páginas do papiro - 13 pranchas escritas de ambos os lados - sugere que Judas estaria, afinal, cumprindo os desejos de Jesus quando o entregou àqueles que o mataram.

Há uma tendência na contemporaneidade de se questionar o fato de a história da humanidade (e, por conseguinte, a história de cada um) estar calcada em efemérides ou momentos críticos, que dão um sentido teleológico à vida. Ou seja, uma crítica à teoria característica do hegelianismo e seus discípulos, segundo a qual o processo histórico da humanidade - assim como o movimento de cada realidade particular - é explicável como um trajeto em direção a uma finalidade que, em última instância, é a realização plena e exeqüível do espírito humano.

No final dos anos 70, o renomado medievalista francês Jacques Le Goff editou uma coleção de ensaios, chamada La nouvelle histoire, propondo uma nova história escrita como uma reação deliberada contra o “paradigma” tradicional que, como afirma o historiador Peter Burke em Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro, vem a ser a visão do senso comum.

Senso comum que tem a traição de Judas Iscariotes ao Cristo na conta de momento crítico da história da humanidade, agora questionado pela revelação do Evangelho de Judas.

A reação do papa Bento 16 foi violenta. E é natural que ele esperneie, que insista num passado fixo, imutável, invariável, oposto ao fluxo continuo do presente. Afinal, há quem diga que a maturidade é o estado de espírito que se acomodou, que se conciliou com o status quo, que renunciou aos sonhos mais atrevidos de aventura e realização. Mas é natural também que não se possa mais contar a vida de Cristo sem pelo menos um adendo informando que há – ou houve, caso venha se provar que os manuscritos são falsos – a possibilidade de Judas não ter sido um traidor, mas um obediente.

Isso, o papa Bento 16 queira ou não, é um passo para uma nova história em que a informação sobre o significado final das coisas é esparsa, muitas vezes evidentemente falsa e provavelmente nunca convincente. Um convite à escrita de umas histórias outras do mundo e de cada um que a menina que sentava na janela para assistir ao linchamento de Judas adoraria ler.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

3 comentários:

  1. Estamos tão acostumados a "ingerir" o que nos passam, que fatos novos nos tiraria do comodismo.
    Gostaria de ver o Papa esperneando.
    Quanto à malhação do Judas, o que me lembro
    e que as fofoqueiras de plantão aproveitavam para
    detonar a vizinhança.
    Abraços

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  2. Quando a história é virada de cabeça para baixo, é esperado que os donos da verdade absoluta espeneiem. Mudar é dificil para muitos, mas quase impossível para a Igreja Católica. Costumam tentar reparações com milênios de atraso.

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  3. A imutabilidade da igreja católica talvez seja uma das razões da debandada de tantos dos seus seguidores. Se ficar provado que Judas não foi traidor, a igreja terá de se render.
    Li há muitos anos um livro que já colocava a entrega de Jesus por Judas como um ato político. O livro é "Eu, Judas", e achei-o muito interessante. Parabéns pelo texto, Anna Lee. Muito interessante.
    Abraços

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