segunda-feira, 10 de maio de 2010




Iara tropeça em esqueletos

* Por Eduardo Murta

Está lá, num envelope cinza. Data antiga. Iara sustenta os dedos parados, retarda o encontro. Revê-lo seria tropeçar em esqueletos à espreita em noites sonâmbulas. Pensa em fechar a pesada enciclopédia, e deixar tudo ali, esquecido. Desacelera. Volta atrás. Vai abri-lo. Ela ampara as mãos trêmulas à ponta da estante. Disfarça, porque não quer que Divino se dê conta de um assombramento que era só dela. Morto estava, morto não estaria. Daí um braseiro lhe correr da nuca às coxas, dos pés à face.

E ela agora se enxerga num outubro distante, em que múltiplos símbolos de revolução, vespas, acordes de bossa nova e jovem guarda disputavam um lugar à cesta de sonhos de cada um. Está à entrada do restaurante, numa espiral de neblina que talvez simbolizasse a ambivalência daqueles tempos. Ter conhecido Marcos meses antes fora um desses sinais. Havia chegado como a sensação de mar morno beijando os pés. Ambos se mirando sem rodeios, ela daria o primeiro passo. O vestido indiano flanando aos ladrilhos hidráulicos do lugar.

A imagem seguinte ela guardaria feito a um emblema. Sorriram. Fizeram pêndulo com os corpos. Aproximaram as bocas, sem uma palavra sequer. Nomes era o que menos importava. À primeira frase ela enxergou mero clichê de conquistador: “Eu esperava por você”. À segunda, manual para iludir garotas tolas: “Fomos feitos pra toda a vida”. Contasse outra.... Ainda assim, viajou nas formas do rosto dele – sobrancelhas cerradas, lábios de cinema. Era, no fundo, irresistível. Se reencontraram.

Ela fazendo charme, tratando como um caso menor. Até se pegar despertando, meio da madrugada, pensando nele. Ou que faltasse ao serviço, 40 graus forjados em atestado, a reservar tarde inteira para o amor. Aquilo, sim, era febre sem freios. O telefone, dos pretos estilosos, deliberadamente retirado do gancho. Mais tarde, imitando ar de virgens, se davam com as famílias. Respondiam formais a planos para o casamento e se despediam recatadamente quando o pai de Iara, teatral, sinalizava hora de partir. Bigodões, um pijama em bolinhas e o ajuste sonoro no despertador de cordas.

Foram temperando humor e amores na balança do equilíbrio, depois passando a interrogações que se transformariam em incômodo tumor a ela. Uma ausência. Duas ausências. Um sumiço mal explicado. Ela se cansara de meias-respostas. À porta do restaurante, naquela noite, cobrou verdade. Ele, hesitante, contou que era parte de uma célula pronta para entrar de cabeça na clandestinidade, pegar em armas contra a ditadura de plantão. Ouviu, incrédula. Os lábios tremendo. Marcos jurando que sumiria por fase curta. Havia algo mais: uma garota do grupo.... Iara abortou-lhe a frase – os dedos calando-lhe, amargurada e meiga –, porque imaginava o final.

E, naquele outubro sob neblina, honrou a fama de canceriana. Era personalidade em lâminas, se desafiada. Se arrancou sem despedidas. Em casa, reduziu o rastro da relação ao cenário de vendavais ferozes. Destroçou fotos, desfez álbuns. Deitou perfumes privada abaixo, incendiou cartas e postais e fez livros em pedacinhos. Jamais voltou a vê-lo. Se surpreendia, agora, com o que encontrara, num tempo em que as revoluções estavam condenadas aos compêndios históricos.

Ela mira Divino. Asas à internet. Confere se a observa. Está distante. Iara abre então o envelope. A flor, seca, incensa um filete de lembranças. Ela se volta ao homem que escolhera. Pede que jogue o ramo pela janela. Era nada, jurou. Divino compreendia a tradução do não dito. Sugeriu que ela mesma o fizesse. Dali, 18 andar, ambos seguem os fragmentos desidratados se despetalando à queda livre. Rodopiando num balé que fazia lembrar esqueletos insones em definitiva despedida.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

2 comentários:

  1. As vezes nos apegamos durante anos
    a uma determinada lembrança, para
    no final nos desfazermos dela...
    Nostálgico e belo ao mesmo tempo.
    Abraços

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  2. Palavras catadas e meticulosamente agrupadas para causar o que causam: emoção e impacto.
    Destaco: " reduziu o rastro da relação ao cenário de vendavais ferozes."
    Quem nunca teve vontade de esmigalhar objetos concretos para suportar o dilaceramento da alma?

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